Mary Roberts Rinehart (1876-1958) foi uma das muitas norte-americanas que perdeu as suas poupanças na sequência do crash de 1903 da bolsa de valores. Em consequência, virou-se para a literatura e o resultado foi “O Mistério da Escada de Caracol” (Livros do Brasil, 2020), uma obra de estreia divertida e pioneira dentro do género policial, publicada pela primeira vez em 1908, com grande êxito, e agora reeditada na nova série da Colecção Vampiro.
O humor nasce do tom desempoeirado e ligeiramente sarcástico com que a protagonista, Miss Rachel Innes, narra os acontecimentos. Segundo as suas próprias palavras, “esta é a história de como uma solteirona de meia-idade perdeu a cabeça, desertou do seu lar, alugou uma casa mobilada para o verão, fora da cidade, e se viu envolvida num desses misteriosos crimes que mantêm os nossos jornais e as agências de detetives em contínua ventura e prosperidade”. Compreensivelmente insatisfeita com a pouca importância atribuída pela imprensa ao seu papel no esclarecimento do caso, sente-se impelida a contar toda a verdade, temperando-a com a sua visão do mundo – a qual desafia alguns ditames do politicamente correcto actual.
O aluguer de uma casa de campo com o promissor nome de Sunnyside, para passar o verão na companhia dos dois sobrinhos órfãos, de quem cuida há vários anos, e da fiel aia Liddy, com quem tem picardias deliciosas, em resultado de uma longa convivência, promete oferecer uma fuga agradável à rotina. Porém, o grupo não tarda a descobrir que a apregoada paz do campo é uma mentira. Desde o primeiro dia, a estadia é perturbada por rumores acerca de fantasmas, vultos à espreita nas sombras e ruídos estranhos, culminando no aparecimento do cadáver baleado de um homem desconhecido junto à entrada do vestíbulo. Os segredos que os sobrinhos de Miss Innes escondem e os comportamentos estranhos da criadagem contribuem para adensar o enigma.
A intriga inclui mais mortes, amores contrariados, pressões para que Miss Innes desista do aluguer da casa e até um escândalo financeiro que leva à falência de um banco. A esse respeito, é interessante notar a crítica aos directores das instituições bancárias, “que só se reúnem para jantar e ouvir um curtíssimo relatório do caixa”, bem como ao Governo, “que apenas fiscaliza rapidamente os livros dos bancos duas vezes por ano” e ao expediente de “lançar-se mão de empregados subalternos para encobrir as patifarias dos gestores”.
A polícia está presente e faz o que lhe compete, mas não seguimos os meandros das suas investigações. Em vez disso, acompanhamos uma figura feminina surpreendentemente forte e independente, apresentada ao público muito antes da icónica Miss Marple, que não esconde o intelecto que sabe possuir e não hesita em pegar num revólver quando é necessário enfrentar uma conspiração sombria.
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