John Berger (1926-2017), crítico de arte, pintor e escritor inglês e agitador de mentes, continua a ser um dos maiores ícones da contra-cultura e um dos pensamentos mais influentes dos nossos dias, capaz de se rebelar contra especialistas e especializações e de manter um olhar transversal e plural sobre o mundo, não esquecendo as margens da sociedade ou os exemplos de resistência, sejam face a governos ou às regras de mercado.
Escrito em 1972 após o grande êxito da série homónima exibida na BBC – série de Michael Dibb que contou com a participação de Berger -, “Modos de Ver” (Antígona, 2018) é o seu mais famoso ensaio onde, entre textos e imagens, defende o olhar como um acto de escolha, numa viagem pela História da Arte onde o grande objectivo parece ser o de rebentar o dique que divide a alta e a baixa cultura, democratizando a crítica e arrancando as obras de arte à obscuridade das casas de particulares ou à solenidade dos museus; abrindo, como escreve Jorge Leandro Rosa no prefácio, “a galeria de arte à história e a todos os acontecimentos que o espaço expositivo não pode ou não pretende mostrar”. Ao todo temos sete ensaios, três deles exclusivamente visuais, onde o grande objectivo foi, segundo John Berger, “desencadear um processo de questionamento” do olhar que, aqui, se transforma numa ferramenta política – em John Berger, afinal, tudo é político.
“Vem ver antes das palavras”. Primeira frase de um ensaio que penetra no intervalo situado entre as palavras e a visão, e que defende que o olhar é um acto de escolha, sendo a imagem definida como “um olhar que foi recriado ou reproduzido”. Em destaque está também Franz Hals, “o primeiro retratista a pintar as personagens e as expressões criadas pelo capitalismo”, algo que na Literatura, segundo Berger, terá sido realizado mais tarde por Balzac. Fala-se também da câmara de filme com aquilo que, ao contrário da perspectiva na pintura, veio demonstrar que na realidade não havia centro, antes de uma entrada a pés juntos na valorização da arte na modernidade, rodeada por “uma atmosfera de religiosidade completamente postiça”. A grande questão que este ensaio, um primo não muito afastado de “A Obra de Arte na Época da Sua Reprodutibilidade Técnica” de Walter Benjamin coloca, parece ser esta: a quem deve pertencer o poder da arte do passado?
O uso e as convenções de que a presença social da mulher é de um tipo diferente da do homem é o tema de um outro ensaio, onde se desenvolve a ideia de que a mulher, ao longo dos tempos, tem sido persuadida a avaliar-se continuamente, simultaneamente no papel de “escrutinadora” e “escrutinada”, transformando-se no mundo da arte num objecto do olhar – os nus são um exemplo da objectização da mulher ao longo da História. Resumidamente, “os homens agem e as mulheres aparecem”, sendo o verdadeiramente o espectador-proprietário.
“Se comprarem um quadro, compram também o aspecto da coisa que este representa”. Aqui, debate-se a analogia entre o “possuir” e o modo de ver a pintura a óleo, tentando chegar-se afinal aquilo que é o amor pela arte. Uma das ideias dominantes presente neste ensaio acaba, também, por ser dominadora em todo o livro – sendo também uma das suas mais importantes mensagens: “Em qualquer período histórico, a arte tende a servir os interesses ideológicos da classe dominante”. John Berger escreve aqui uma história condensada da pintura a óleo, profusamente ilustrada.
O último ensaio textual incide sobra as imagens publicitárias, que pertencem ao instante mas nunca ao presente. Dito de outra forma, referem-se muitas vezes ao passado mas falam sempre do futuro. Segundo Berger, “a publicidade lida com relações sociais, não com objectos. Não promete prazer mas felicidade: essa felicidade que é concebida a partir de fora pelos outros”. Publicidade que, para Berger, é quase uma continuidade da pintura a óleo, onde se assiste a uma celebração da propriedade privada e do poder de compra.
Um ensaio fundamental no universo da História da Arte, no qual a sua crítica surge democratizada, dando ao espectador global – e não apenas ao crítico de arte – um papel político e poderoso. “Só vemos aquilo para que olhamos. Olhar é um acto de escolha”.
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