Teolinda Gersão inicia mais um ano da sua longa e multipremiada carreira literária com a publicação de “O Regresso de Júlia Mann a Paraty” (Porto Editora, 2021), uma obra composta por três contos que mergulham nas mentes de igual número de figuras históricas e lhes dão voz, emergindo na forma de uma teia intrincada e surpreendente.
Primeiro, encontramos “Freud pensando em Thomas Mann em Dezembro de 1938”. Aqui, o velho psicanalista judeu, forçado pela ascensão do nacional-socialismo a exilar-se em Londres, após 79 anos de vida em Viena, reflecte acerca da impotência da cultura perante o terror nazi e interpreta a obra do escritor Thomas Mann à luz das suas teorias.
O segundo conto, “Thomas Mann pensando em Freud em Dezembro de 1930”, funciona como um espelho distorcido do primeiro, embora decorra numa data anterior. Considerando Freud intelectualmente seu igual, o escritor dirige-se a ele em pensamento e imagina-se a tentar seduzi-lo, confessando a homossexualidade que oculta da sociedade e outros conflitos interiores que o impedem de fruir plenamente a vida, apesar do sucesso literário.
No terceiro e último conto, que tem o mesmo título do livro, acompanhamos a última viagem de Júlia Mann, a mãe do escritor, que na hora da morte se imagina a cair ao rio Trave e a ser arrastada para o oceano Atlântico até chegar ao Brasil, onde nasceu, enquanto o espírito navega pelas suas recordações. Em Paraty, teve uma infância feliz, amada pela mãe e pela ama negra escravizada, sendo o avô materno o português Manuel Caetano da Silva, que casou com uma brasileira de origem índia. Contudo, após a morte da mãe, o pai, um alemão, regressa com os filhos à terra natal, Lübeck, onde “as famílias eram prisões, e a sociedade uma prisão maior, onde se encarceravam todas as famílias”. Júlia passa a ser vista como uma mestiça estrangeira e é obrigada a aprender não só uma nova língua, como também novas regras de conduta. Impedida de casar com quem queria e de se afirmar no mundo da arte, unida a um homem que só desejava o seu dote, será talvez por ironia que, num livro iniciado com as reflexões de Freud, terminará a acreditar que foi má mãe, simplesmente por ter partilhado com os filhos as suas memórias: “As boas mães transmitiam aos filhos paz e felicidade, e ela transmitira aos seus insatisfação, angústia, frustração, desejo de qualquer coisa sem nome, definitivamente perdida no passado e intangível no presente e no futuro”.
Há também uma ironia subtil no conjunto dos textos, nos cruzamentos entre a ideia que cada personagem faz de si própria, a percepção que tem dos outros e a forma como é vista por eles. Tendo estudado Germanística, vivido na Alemanha e leccionado literatura alemã, a autora conhece a vida e a obra das personagens e está em condições de reconstituir de forma convincente os seus mundos interiores, ao mesmo tempo que aborda, numa prosa bela e segura, temas como o totalitarismo nazi, a discriminação étnica, a arrogância de alguns intelectuais e as convenções sociais que afectam sobretudo as mulheres.
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