“A partir do mês de Setembro do ano passado, não fiz mais nada a não ser esperar um homem: esperar que ele me telefonasse e que viesse a minha casa. Ia ao supermercado, ao cinema, levava a roupa à lavandaria, lia, corrigia provas, comportava-me exatamente como antes, mas sem uma longa habituação a esses atos teria sido impossível, a não ser com um esforço assustador. Era principalmente quando falava que eu tinha a impressão de viver por impulso. (…) As únicas ações em que eu empenhava a minha vontade, o meu desejo, e algo que deve ser a inteligência humana (…) tinham, todas, uma relação com esse homem.”
Uma mulher culta, independente e divorciada vive uma paixão empolgante, obsessiva, com um homem casado, estrangeiro e mais jovem. Por quem espera, dia após dia, revelando a si própria a consciência de que “não tinha nenhum futuro a não ser o próximo telefonema a marcar um encontro”. Vivendo entre a felicidade e a dolorosa solidão questiona-se, ao ver outras mulheres, “se elas tinham, como eu, sempre um homem na cabeça, se não, o que é que faziam para viver assim”.
Nas primeiras páginas de “Uma Paixão Simples” (Livros do Brasil, 2020), compreendemos que o desejo é a palavra de ordem, visível nos pequenos gestos e atitudes do dia a dia. O leitor usufrui de uma narrativa curta mas intensa – muito intensa -, sem falsos julgamentos ou pretensões exibicionistas. Um misto de romance, desabafo, reflexão, diário, caderno de apontamentos, onde Annie Ernaux narra, de forma serena, acutilante, frontal, sem pudor ou qualquer tipo de preconceito, os sentimentos mais cristalinos e sinceros de uma mulher que vive uma paixão avassaladora, inquieta, e os seus encontros sexuais.
Afinal, o que pode uma paixão verdadeira e intensa? O que separa o amor de uma paixão tão forte? Num ato de plena honestidade e até de alguma coragem a autora, narradora, confessa que “não me importava de morrer depois de ter ido até ao fim desta paixão – sem dar um sentido preciso a este «até ao fim» -, da mesma forma que poderia morrer depois de ter acabado de escrever isto, daqui a uns meses“.
Lançado em 1991, “Uma Paixão Simples” surpreendeu o panorama literário francês, quebrando os estereótipos do romance sentimental pelo seu erotismo e honestidade. Em 2020, foi adaptado ao cinema e chega a Portugal pela editora Livros do Brasil.
Annie Ernaux nasceu em Lillebonne, na Normandia, em 1940, e estudou nas universidades de Rouen e de Bordéus, sendo formada em Letras Modernas. É actualmente uma das vozes mais importantes da literatura francesa, destacando-se por uma escrita onde se fundem a autobiografia e a sociologia, a memória e a história dos eventos recentes. Galardoada com o Prémio de Língua Francesa (2008), o Prémio Marguerite Yourcenar (2017) e o Prémio Formentor de las Letras (2019) pelo conjunto da sua obra, destacam-se os seus livros “Um Lugar ao Sol” (1984), vencedor do Prémio Renaudot, e “Os Anos” (2008), vencedor do Prémio Marguerite Duras e finalista do Prémio Man Booker Internacional.
1 Commentário
Vi o filme e desde então procuro loucamente ter acesso ao livro. Mas parece muito difícil.