“Sempre me agradou o desafio e o exercício de disciplina que é construir um conto genericamente baseado numa experiência pessoal. (…) Sempre me fascinaram os fenómenos inexplicados, o lado mais sombrio da vida.”
As palavras são de Daphne Du Marier e constam da nota ao leitor, escrita em 1987, que precedeu a leitura de “Os Pássaros e Outros Contos Macabros” (Livros do Brasil, 2020), livro onde Daphne dá corpo ao espírito gótico numa selecção de contos onde não há lugar para finais felizes.
Nascida no seio de uma família proeminentemente artística e literária, Daphne nasceu em Londres a 13 de Maio de 1907. Publicou os seus primeiros trabalhos na revista Bystander, o que a levou a assinar contrato com um agente literário. Em 1931 lançou o romance “Apaixonados”, o primeiro de mais de duas dezenas que publicou ao longo da sua carreira literária. Na sua escrita, tal como na de pares como Edgar Allan Poe ou Henry James, dominam os elementos sobrenaturais, bem como o revelar da parte mais negra que alimenta o espírito humano.
“Os Pássaros”, conto que Alfred Hitchcock celebrizou no grande ecrã – apesar de, segundo Daphne, “o cenário tenha sido transferido para a América e a narrativa tenha sofrido alterações” -, foi inspirado pela imagem de um homem a trabalhar o campo, enquanto gaivotas sobrevoavam a sua cabeça. Um conto para o tempo presente, onde domina a inquietação, se impõe o confinamento obrigatório e há também lugar para o negacionismo, uma vez que “as pessoas tinham de passar pelas coisas antes de serem sensíveis a elas”.
A sua capacidade de pegar em episódios aparentemente banais do quotidiano, deles extraindo e ampliando o seu lado mais negro e inacessível, está bem patente nos outros contos desta edição: “Não olhes agora” leva-nos até Veneza, cidade na qual um casal procura reencontrar-se após um acontecimento traumático para ambos, apenas para darem de caras com a superstição e a inevitabilidade do destino; “A macieira” apresenta-nos a um homem que, durante grande parte da sua vida, foi um pau-mandado da mulher, uma pouco risonha figura que afirmava ter sido “escolhida entre os seus semelhantes para carregar com um fardo impossível”. Alguém que, mesmo do túmulo, parece conseguir tornar amargos os pequenos prazeres do seu homem; em “As lentes azuis”, uma operação milagrosa aos olhos devolve o sentido da vista a uma mulher, com o senão de passar a ver qualquer pessoa com a cabeça de um animal. Um conto que fará as delícias dos maluquinhos das conspirações, e que mostra que as fronteiras entre a verdade e a mentira estão muitas vezes nos detalhes quase invisíveis; ao mesmo tempo que traça um retrato da decadência e do período vitoriano, “O Álibi” dá-nos a conhecer um tipo racista, misógino, xenófobo e assassino em potência, que descobre uma segunda vida nas margens do Tamisa; a fechar temos “Nunca depois da meia-noite”, conto no qual um ex-professor de profissão irá confirmar o mantra que o tem guiado ao longo de uma vida: “Quando uma pessoa se liga a alguém, acontecem sarilhos, e muitas vezes autênticas catástrofes”. Um livro negro para tempos não menos claros.
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