Tyll Ulenspiegel, também conhecido como Till Eulenspiegel, é um ícone do folclore germânico, cuja origem pode ser traçada até um livro publicado no início do século XVI, no qual são descritas as peripécias burlescas de um homem nascido por volta do ano 1300. Embora a existência real desta personagem nunca tenha sido provada, a cultura popular desenvolveu, a partir dela, um mito que representa o desafio aos poderes instituídos através da força subversiva do humor.
O premiado escritor germano-austríaco Daniel Kehlmann reinventa este mito em “Tyll: O Rei, o Cozinheiro e o Bobo” (Bertrand Editora, 2020), transpondo-o para o cenário da Guerra dos Trinta Anos, um dos conflitos mais sangrentos da História, que devastou grande parte da Europa entre 1618 e 1648, deixando marcas profundas no território que actualmente corresponde à Alemanha.
Como um prestidigitador, Kehlmann baralha a cronologia dos episódios que nos apresentam da vida de Tyll, desafiando-nos a unir as peças do puzzle. Em criança, encontramo-lo a aprender sozinho a caminhar sobre uma corda esticada, até descobrir que o segredo para não cair é “fugir da queda”. Tal descoberta marcará o resto da sua vida, que será uma fuga constante. Quando a desgraça se abate sobre a sua família, na sequência de uma caça às bruxas kafkiana, Tyll foge da sua aldeia para a vastidão do mundo, que há muito lhe atiçava a curiosidade. Sempre muito magro, com as faces cavadas, os olhos enterrados nas órbitas e os lábios finos, procura escapar, nem sempre com êxito, à fome, à guerra e aos salteadores. Fugindo dos grilhões invisíveis das convenções que prendem tantos dos seus contemporâneos, escolhe a liberdade da vida de saltimbanco, mesmo sabendo que, a essa “gente itinerante”, “nenhuma guilda protege e nenhuma autoridade defende”. Através das suas exibições, consegue que o povo das terras por onde passa esqueça a tristeza por um instante e compreenda “como pode ser a vida para quem realmente faz o que quer, sem acreditar em nada nem dar ouvidos a nada”.
Já famoso, torna-se bobo na corte exilada do Rei e da Rainha do Inverno, cujos actos desencadearam a Guerra dos Trinta Anos – e que ficaram assim conhecidos porque só reinaram durante uma dessas estações. Nesse papel, Tyll desfruta da liberdade de falar como mais ninguém se atrevia aos nobres, para quem a gente comum não passava de “uma multidão de sombras, […] um povo de formigas que pululavam pela Terra e que tinham em comum o facto de terem falta de qualquer coisa”.
Em tempos violentos, equilibrando-se entre a arrogância dos poderosos e a lógica enviesada dos eruditos ambiciosos que defendem as suas crenças, “sem permitir que os caprichos da realidade criem incertezas”, Tyll segue de aventura em aventura até o seu mito alcançar a imortalidade, fugindo assim à própria morte.
Com sensibilidade e humor, Kehlmann faz-nos mergulhar no ambiente das aldeias medievais e na devastação da guerra, guiados por uma galeria magnífica de personagens, num romance magistral cujo realismo é pontuado por momentos fantásticos que brilham tanto como o espírito de Tyll.
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