Em Portugal, durante o ano de 2020 – de acordo com uma notícia do jornal Público de 23 de Novembro desse ano -, foram assassinadas 30 mulheres, 16 delas em contexto de relações de intimidade. As contas foram feitas pelo Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA), da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), a partir das notícias reportadas nos media entre 1 de Janeiro e 15 de Novembro. Se fizermos o exercício de recuar um pouco mais na linha temporal, desde 2004 já foram assassinadas 564 mulheres em Portugal.
“Apneia” (Casa das Letras, 2020) não é, porém, um ensaio sobre a violência, apesar de ela estar no centro deste romance assinado por Tânia Ganho. Um romance conduzido por Adriana, uma mulher que, no redemoinho em que se transformou a sua vida, começa a duvidar da sua própria sanidade, pretendendo cortar quaisquer laços com a empatia em nome da sobrevivência. Uma mulher que, depois de ganhar coragem e sair de casa com o filho de cinco anos, pondo fim ao seu casamento com Alessandro, percebe que o pesadelo está longe de terminar: “Desligaram o computador e foram-se deitar. Duas casas separadas por um rio, cinco anos de separação e, no entanto, quando a criança dormia, fosse em que margem fosse, eles continuavam juntos. Estavam casados, nunca tinham de estar casados”.
Alessandro é um instigador do medo, um causador de crises de ansiedade, faltas de ar e náuseas, um daqueles homens que, não aceitando serem deixados para trás, abandonados sentimentalmente, se recusam a prosseguir, tudo fazendo para que a ex-parceira sofra uma punição máxima, mesmo que isso implique a destruição do filho de ambos – uma criança que, de repente, passa a disputar de forma a manter o sobressalto em estado de permanência.
Em “Apneia”, Tânia Ganho junta os fragmentos de várias injustiças e cria um monstro difícil de abater – um representante dos muitos monstros que vivem entre nós -, um representante ficcional do mundo da violência conjugal e parental, da violência familiar, conduzindo também o leitor aos meandros da Justiça que, não poucas vezes, falha na sua missão, preferindo a burocracia a qualquer traço de humanidade. Um retrato da aprendizagem do medo, da perda da cumplicidade – e de se ser cúmplice -, da chantagem e da manipulação, sempre acompanhado pela poesia de Anne Sexton que, a certa altura, deixa um conselho que deveria ser um mantra para muitas vidas: “Pega em tudo o que vires e ouvires, sê ávida em relação à vida e, pelo amor de Deus, não peças autorização”. Ámen.
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