Vamos por partes, como diria Jack, o Estripador. Um ano tão estranho e absolutamente inaudito, talvez seja o mais adequado para uma experiência, simultaneamente pessoal e conceptual (na medida em que passarei a desvendá-la). Este texto começou a ser escrito há vários meses, pouco depois de o livro que o desencadeou ter sido publicado em Portugal (Julho ou Agosto de 2020). Por motivos vários, foi ficando para trás. Pretextos e contratempos foi coisa em que 2020 não foi avaro.
Consegui encerrá-lo em Setembro. Novos contratempos deixaram-no no sossego do disco rígido do meu computador. Em muitos casos, o assunto estaria naturalmente encerrado, por vezes, acontece, e nem tudo o que se escreve é publicado. Mas este é um ano diferente e este é um livro diferente, por nascer de um tema que fez deste um ano diferente. Resolvi regressar ao texto e perceber se ele se aguenta. E também confrontar as minhas próprias impressões ao lê-lo, com as suas descendentes, uns meses depois, alimentadas pela extensão do quadro inicial. Acabemos com a introdução: o livro chama-se “Este Vírus que nos Enlouquece” (Guerra & Paz, 2020).
Escrito no calor do confinamento inicial que a pandemia da Covid 19 ditou em todo o mundo, este é um livro que deve ser lido com abertura de espírito, mas sem descurar a inteligência de o encarar como mais uma acha para um incandescente debate intelectual e conceptual, não um apelo desregrado à rebelião de massas, revolta em turba contra as medidas sanitárias ou um apelo ao boicote das mesmas. Até porque, basta perceber que o próprio autor, o escritor, jornalista, filósofo (formado em Epistemologia) Bernard-Henri Lévy não abdicou do seu próprio confinamento.
Apesar do número escasso de páginas, Lévy consegue elencar diversos pontos para discussão, alguns alertas e umas quantas críticas, partindo de uma análise que não aponta baterias à necessidade de combater a pandemia, ou à nossa ignorância inicial sobre a questão, mas tenta ir mais fundo. Este livro não é uma reacção ao confinamento global provocado pela pandemia, repita-se, mas sim uma tentativa de analisar o discurso que o acompanhou e norteou, preterindo as condicionantes sanitárias que ditaram tão inaudita medida, mas privilegiando um olhar filosófico, inquiridor, quase no campo da semiótica.
Colocando em evidência o papel da Ciência, em geral, e da Medicina, em particular, nas grandes opções que definem 2020 a nível mundial (“nunca antes vimos, como na Europa, chefes de Estado a cercarem-se antes de falar de um ou vários concelhos científicos”), Lévy não esconde outros receios, alertando como “a «comunidade» do conhecimento não é mais comunitária do que as outras; é atravessada por divisões, sensibilidades e interesses divergentes, crimes disfarçados, brigas terríveis, e, obviamente, disputas fundamentais».
Recorde-se, quando isto foi escrito ainda não se falava de vacinas com a noção da celeridade que as viria a gerar, mas as desigualdades que persistem na sua aplicação prática à escala universal, bem como os interesses que todos os envolvidos não abandonaram, tudo isso se mantém. Intuímos essa arquitectura maior que a própria pandemia, por exemplo, nas mutantes restrições de circulação entre países ou no desigual calendário de vacinação mundial, com uma ampla variedade de metas temporais.
Por outro lado, o confinamento internacional desencadeou uma paralisação quase total e, um pouco em todo o mundo, deu-se uma reacção ao nível do Ambiente, já que muitos dos factores que o colocam em causa estão relacionados, justamente, com a actividade humana. Ou, pelo menos, com a forma como está organizada. Aviões pararam em terra; autoestradas descobriram manhãs sem engarrafamento; diversos sectores de produção deixaram de o ser. Porém, é preciso não inverter o ónus da questão e não enaltecer um problema inesperado para ver nela a solução para outro, bastante anunciado. Frases como a perigosa constatação de que “o céu nunca foi tão azul, nem a natureza tão pura. Nem a cidade tão bonita, como na época do coronavírus”, transportam consigo uma (ir)responsabilidade incalculável. Esse é outro dos pontos que o livro do filósofo francês destaca.
Da mesma forma, alguns detectaram nesta pandemia sinais de um qualquer aviso mais ou menos místico, uma espécie de alerta sobre os dias de um qualquer juízo, se não final, pelo menos, decisivo. Alicerçando a sua crítica em diversos episódios da História, outras pandemias e cataclismos que, na sua época, foram interpretados como denúncia divina, alerta cósmico, repreensão telúrica, Bernard-Henry Lévy não esconde a sua falta de paciência: “E eis que surge, finalmente, uma parvoíce: a ideia de que o vírus fala connosco, que ele tem uma mensagem para nos entregar”.
Recorde-se, mais uma vez, que este livro foi escrito numa fase inicial da disseminação da pandemia, nem o autor nem ninguém sabia de antemão a longevidade das nossas preocupações ou a profundidade das consequências, causas e efeitos continuam a surgir, com a evolução da situação internacional. Por exemplo, seria interessante ver exploradas a influência das condições socioeconómicas na propagação do vírus, na assimetria da sua difusão e na destruição da frágil carapaça que tantas vezes nos leva, enquanto sociedade, a pretender ignorar a precariedade generalizada e as exíguas condições em que vive grande parte da população mundial. O tal sentimento de “vai ficar tudo bem” que se fez escutar nos primeiros tempos da pandemia, rapidamente deixou à vista a fragilidade que continha em si mesmo. Ou, ainda, uma ponderação mais aprofundada sobre as consequências do – hoje tão idolatrado – teletrabalho, que implica horas a fio num mesmo espaço, exiguidade de contacto humano presencial, uma fácil perda de consciência em relação aos horários de trabalho, coexistência do ambiente “caseiro” e “laboral”, fazendo-os convergir ao limite, e outras consequências, físicas e mentais, ainda por apurar.
Contudo, é um livro que não deixa de ser um documento corajoso, até pela abordagem ontológica que pressupõe. Vários meses passados sobre a conjuntura que ditou estas suas páginas, seria deveras interessante confrontar Bernard-Henry Lévy com algumas das suas reflexões e tentar perceber o que mudou no seu pensamento, ou o que se veio a confirmar. E, a reboque, um confronto entre as nossas próprias “certezas” (com aspas mais que justificadas), moldadas pela evolução dos acontecimentos e duração progressiva de uma situação que imaginámos muito mais célere e, quiçá, abrangente. Infelizmente, temos ainda tempo para tudo isso, uma vez que a pandemia perdura e desconhecemos, em rigor, a extensão da sua duração. E das suas consequências, no mundo como o conhecíamos. Por tudo isto, talvez um texto sobre este livro não esteja assim tão desfasado no tempo…
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