“Morremos por falta de fé na vida, porque nos recusamos a render-nos completamente à vida. (…) Nos esforços desesperados que fazemos para sobreviver, para preservar aquilo que criámos, provocamos a nossa própria morte. (…) Viver perigosamente, como Nietzsche disse, é viver nu e sem vergonha. Significa depositarmos a nossa confiança na força da vida e deixarmos de lutar com um fantasma chamado morte, um fantasma chamado doença, um fantasma chamado pecado, um fantasma chamado medo, e por aí fora. O mundo fantasma!”
A originalidade dos romances de Henry Miller (1891-1980) pode ser atribuída à sua capacidade de magistralmente combinar autobiografia com critica social, reflexão filosófica e descrições pictóricas de sexo, numa linguagem ousada e por vezes destravada, valendo-lhe anos de censura. Como poucos consegue enlaçar narrativas sobre quotidiano, sexo e ideias, privado e público, ficção e realidade.
“Nexus” (Livros do Brasil, 2020 – reedição), escrito em 1959, é o terceiro elemento da trilogia mítica composta por “Sexus” (1949) e “Plexus” (1953), um texto enxertado pela própria experiência do autor numa altura em que vivia em Nova Iorque nos anos vinte e trinta, absolutamente apaixonado por aquela que viria a ser a sua segunda mulher, uma dançarina que já conhecera e apresentara em “Sexus”. Nesta fase a confusão é total, envolto numa complexidade de desejos e afectos, intimidades, erotismo, reflexões existenciais e monólogos filosóficos.
Em género de abertura, Mona e Stasia revelam-se senhoras de uma cumplicidade litigante e de uma intimidade a dois, outras vezes distendida num mundo prenho de sedução e de dissimulação, um mundo de ténues fronteiras entre a mentira, a invenção, a deturpação e a fantasia, no qual se revelam “habitantes, talvez, do vestíbulo vaginal do amor”.
A densidade na descrição dos sentimentos e da libido que, na origem, granjeou a Miller acusações de linguagem abusiva e de conteúdo imoral, viria depois a revelar-se de grande influência na literatura mundial, especialmente entre os autores que dão primazia à expressão dos desejos.
Em “Nexus”, Miller atinge o pico na crueza do seu estilo, dilatando uma certa dose de futilidade e de solidão na vida de artista, aquele que não se adapta, que é atormentado e que quase sempre sucumbe depauperado. Reflexões em torno da vida literária, do processo criativo, interminável e inquietante, de ténues fronteiras com a própria existência do criador – “é-me indiferente que os livros venham a ser publicados ou não. Quero expulsá-los de dentro de mim, mais nada”. Escrever “exigia grande disciplina para conseguir que as palavras pingassem sem as abanar com uma pena ou mexê-las com uma colher de prata. Aprender a esperar, a esperar pacientemente, como uma ave de rapina, mesmo que as moscas picassem, desalmadas, e os pássaros chilreassem como louco” – e, por vezes, uma grande contundência: “Para nascer águia, uma pessoa tem que se habituar às alturas; para nascer escritor, tem de aprender a gostar de privações, sofrimentos e humilhações”.
Na essência, Miller revela a profundidade da dúvida existencial, da responsabilidade de criar, da intensidade da entrega ao amor e ao desejo, à idealização e à construção de um sonho para o qual podem não existir fronteiras ou impedimentos, desde que o desejo seja contundente. Nesta fase da sua vida, o desejo de manter-se ligado a Mona, independentemente das suas suspeitas e divergências, e de lutar pelo sonho de viver na Europa, “terra do artista, do vagabundo, do sonhador”, traduziu-se na construção de um hino ao amor: uma porta escancarada para o sonho, para a emoção e para o desejo pela vida.
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