A novíssima edição de “Proibido” (Guerra & Paz, 2015 – reedição), do jornalista António Costa Santos, é uma leitura deliciosa, um verdadeiro regalo para os olhos. Relato humorístico sobre a época daquela senhora que não tinha piadinha nenhuma, o livro vai entremeando o rol de proibições caricatas e absurdas dos tempos do Estado Novo – com imagens da altura – e o convite a uma reflexão séria sobre a natureza das ditaduras e do próprio povo português. Sim, que isto de fazer humor com as ditaduras tem graça, sem dúvida, mas não se limita a arrancar sorrisos e risinhos incrédulos; faz-nos também pensar na sorte que temos e na devida gratidão que deveremos sentir por todos os que se sacrificaram e lutaram para que possamos dar lume àquele rapaz jeitoso, ir à missa de melenas descobertas, mostrar as coxas ou passar pelas brasas num banco de jardim.
Se os exemplos parecem levianos, pense o leitor que se referem a coisas que hoje encaramos como dados adquiridos, coisas em que, no fundo, nem pensamos. Porque não há-de uma mulher cruzar a perna, nas suas calças de ganga, e acender um cigarro num bar? Porque não há-de uma pessoa ler o “divino Marquês” ou o que bem lhe apetecer? Ouvir a música que lhe agrada, ver filmes estrangeiros legendados do princípio ao fim, usufruir ou criar arte com toda a liberdade? Porque não havemos de ter um blogue sobre livros em que dizemos bem e mal, expressamos a nossa opinião livremente e publicamos as nossas “postas” para quem as quiser ler? Tudo isto nos parece normalíssimo, mas como sabemos, tempos houve em que eram tabu, proibido, punível pela lei. E, traduzindo à letra uma expressão anglo-saxónica, “o diabo está nos detalhes”. Vê-se melhor o nível de perversidade do regime de Salazar nas coisas pequeninas, na forma como se imiscuía na vida privada dos portugueses, nas regras e regulamentos absurdos que impediam a normalidade que hoje tomamos por garantida.
O autor é de uma perspicácia tremenda ao escolher o absurdo para retratar a época, porque é impossível o leitor não sentir uma empatia e uma revolta imediatas. Ao mesmo tempo que rimos dos episódios caricatos e das proibições – de lei e de tradição – perfeitamente ridículas a que os portugueses estavam sujeitos, é como se tivéssemos a experiência claustrofóbica de viver aquela realidade abafada, isolada, Kafkiana, com os seus chibos, homenzinhos de lápis azul em riste e agentes da autoridade intrometidos e despóticos. Eram tempos negros, como sabemos, mas o facto de este livro ser hilariante permite-nos encará-los, se não com leveza, pelo menos com a presença de espírito necessária para compreendê-los melhor; e essa presença de espírito é uma dádiva do humor em que raras vezes pensamos. O humor é um dos melhores veículos de consciencialização e de aprendizagem – sobre os outros e sobre nós mesmos – e, quanto ao Estado Novo, era uma fonte inesgotável de material.
Mas cada exemplo mais ou menos comezinho que o autor nos oferece é um levantar de véu revelador de podres mais graves, como a violação de direitos humanos que grassava na altura, a desigualdade, a pobreza material e espiritual de um país feito refém. A flagrante desigualdade de género, a inexistência de liberdade de expressão, as prisões e as mortes, o vendar metafórico mas dolorosamente real de um povo imerso na ignorância, na pobreza e na injustiça, todas estas realidades feias são transmitidas por António Costa Santos com uma leveza que nunca é leviana, cuja escrita deliciosa nos faz rir da desgraça. E, se rir é o melhor remédio, “Proibido” entra na categoria dos fármacos humorísticos como uma potente vitamina para a memória, para que nunca esqueçamos o que Portugal foi e, também, para que nunca permitamos que o volte a ser.
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