“A meia-voz” (edição de autor) é um título mais do que adequado para este breve mas intenso romance de Rita Bonet. Harmonizando o sussurro do romance introspectivo com o clamor do romance social e político, a autora atinge um patamar intermédio que, longe de ser incongruente ou insatisfatório, se destaca pelo equilíbrio entre a intimidade e a sociedade, o interior e o exterior. Não é de facto tarefa fácil alimentar duas bestas tremendas em simultâneo – os monstros interiores e os monstros que nos caçam num mundo que insiste em considerar a injustiça uma realidade imutável que é preciso aceitar –, mas Rita Bonet fá-lo com mestria e arte.
Natália, uma jovem a viver em Barcelona, encontra-se num ponto de viragem na sua vida, numa fase de crescimento. E, tal como os ossos nos doem quando crescemos, também a vida nos dói nos momentos de transição e evolução. No caso de Natália, as fontes de dor e angústia são internas e externas: o suicídio da mãe, Matilde, e o suicídio-homicídio de uma Europa em crise, continente antropófago, terra saturnina que devora os próprios filhos. Contudo, não se trata de um romance de lamento, mas sim de luto: o luto pela mãe, que permite à protagonista crescer e descobrir-se, e o luto pela democracia espanhola e europeia, que acaba por gerar ganas de revolta e vontade de quebrar os moldes que nos privam de uma vida digna e plena.
O percurso de Natália, tanto pessoal como enquanto membro da sociedade, é uma curva ascendente de auto-conhecimento e de consciencialização do que nos rodeia que dá lugar à acção ou, pelo menos, à promessa de mudança. Tanto a protagonista como a tribo em que está integrada, uma família de espíritos díspares mas em sintonia, rumam à acção, à tentativa corajosa de fazer algo para enfrentar as bestas de uma utopia que nunca o foi e que dificilmente virá a ser. A crise pessoal de Natália e a crise europeia, sobretudo nos países do sul da Europa, vem mostrar que é necessário evoluir e mudar, não baixar os braços quando nos tiram o tapete, não aceitar a injustiça e a falta de integridade como dados adquiridos, e não permitir que o espírito soçobre. Tal como as feridas interiores podem ser lambidas e ajudar o indivíduo a crescer e a confrontar o que é e quem é, também os lenhos que têm sido abertos na carne do continente são uma oportunidade de nos recordarmos do que realmente importa, e de fazer da resistência uma tarefa quotidiana. Um abrir de olhos, em suma, tanto para o interior como para o exterior.
A escrita de Rita Bonet, tão poética como quase panfletária, oscila entre o murmúrio do pessoal e o clamor do social. Os diários de Matilde, a mãe, são o registo do conflito interno, do mal de alma, da pacificação e da aceitação, e a leitura e interpretação dos mesmos pela filha são um retrato lírico e corajoso do crescimento pessoal, doloroso e belo, para quem se atreve a parar para o encarar e se encarar de frente. Como tal, nestes momentos do romance, a escrita é intimista e segredada, em oposição à voz mais enérgica e reivindicativa que perpassa os trechos de apelo à consciência e à intervenção. Este apelo é feito através do retrato de uma Europa em guerra com os seus filhos, de uma crise que redundou numa austeridade cruel e no fracasso de um modelo social que vai esquecendo, a passos largos, os mais vulneráveis e fragilizando os que querem viver sem ser em sobressalto, de uma forma digna e com o mínimo de segurança. No fundo, assassinando aos poucos a ideia de liberdade, igualdade e fraternidade que, embora seja utópica em termos práticos, não deve nunca deixar de ser o objectivo. A autora insiste neste ponto, e com razão: para a democracia sobreviver, para a sociedade ser viável, a dignidade tem de ser transversal e defendida como o direito humano básico que é.
Aconselha-se portanto a leitura deste romance ao leitor que não tem medo de pensar, que não encara a venda como um acessório de sobrevivência e que tem a coragem de mergulhar tanto nas profundezas da alma como nas trevas de um contexto social e político que faz tremer e temer. Mas não se pense que o optimismo fica de lado nesta obra, porque não fica: o apelo à luta e ao sentimento de pertença a um grupo, a uma família, ainda que não seja uma solução milagrosa para todos os males de espírito e da sociedade, é já um passo tremendo para criar um mundo melhor.
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