“Nadja” (Antígona, 2019) é André Breton no seu auge, despojado de constrangimentos e pleno na afirmação de perspectivas existenciais desapossadas de narrativas supérfluas que possam contaminar aquilo que os sentidos captam e processam. Revela-se um tributo à vida tal como o autor a concebeu, liberta, usufruída sem restrições e sem considerações que lhe diminuam o fôlego. Nesse sentido, em Nadja há complementaridade entre o relato cru e, em certos momentos, enleado pela forma como os próprios acontecimentos acontecem, com uma abundância de fotografias pensadas para dispensar ou, pelo menos, diminuir as descrições tendencialmente promiscuas. Parece pretender o autor que a observação da imagem garanta a integridade da realidade, sem ingerências, como num amor misterioso, improvável, único, esquivo e indubitável, que merece ser vivido tal como é, sem embelezamentos ou filtros, na fonteira da loucura e da não-loucura.
Nadja corresponde a uma narrativa de afeições especiais, pela relação com a personagem em si, mas também pelo espírito criativo, pela criação pura, pela defesa da transparência relativamente à opacidade, pelo desaparecimento do autor atrás da sua obra. Nas palavras do próprio Breton, “o meu único desígnio é relatar os episódios mais relevantes da minha vida tal como posso concebê-la fora do seu plano orgânico, ou seja, na medida exacta em que se abandona aos acasos, ao mais pequeno como ao maior”.
Segue-se o relato – Paris, 1927, o autor exposto à influência dos muitos contemporâneos que, na arte e na literatura, o influenciaram, tendo oportunidade de com vários interagir, realçando o poder das experiências, das imagens e dos sons na construção de tudo; mais até do que a sua tradução ou representação em narrativas que interferem com a liberdade de apropriação individual, porque contaminadas por artimanhas de estética.
Nadja, misteriosa figura feminina, entra em cena numa tarde de outono, uma daquelas dedicada à melancolia do ócio, numa rua de Paris, num momento de opacidade de pensamento e de palco entregue aos sentidos. Seguem-se momentos improváveis de observação e incorporação do mistério, de luta contra as convenções, de aceitação e fascínio pelo incerto, da liberdade de quebrar preconceitos. De se deixar surpreender e impressionar, de aceitar que se pode ser alma errante e, ainda assim, ter propósitos de vida.
Para muitos, Nadja é talvez das melhores representações de André Breton, não apenas por ser uma das obras mais representativas do surrealismo mas, sobretudo, por se revelar um dos romances mais belos, instigantes e poeticamente inspirados do século XX.
André Breton (1896-1966), escritor francês, poeta e líder do movimento surrealista na literatura e na arte, cedo se interessou pelo inconsciente, pela loucura e pelo automatismo psíquico. Igualmente cedo afirmou o seu desprezo pelas convenções sociais e literárias, proclamando a primazia dos componentes oníricos sobre os racionais. Reivindicou uma nova forma de pensar que abolia a ditadura exclusiva da lógica e da moral, e defendia a liberdade total da imaginação como base para a liberdade total do ser humano. “Nadja”, escrito em 1928, é o mistério, a inquietude, o non sensu, a força na fragilidade e o poder do subterfúgio.
“Do primeiro ao último dia, sempre vi em Nadja um génio livre, algo assim como um desses espíritos do ar que certas práticas de magia permitem momentaneamente atrair, mas impossíveis de submeter.”
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