“Se és um daqueles leitores que adoram memórias recheadas de recordações impossivelmente específicas, só te posso dizer uma coisa: não confies nos autores que afirmam lembrar-se perfeitamente dos bolinhos fritos de batata que comeram décadas antes.”
“Recordações do Futuro” (D. Quixote, 2020) é uma narrativa curiosa, que cruza memórias e sonhos com acções em busca de sentido para a vida, intersectando tempos distintos: “Pode o passado servir para uma pessoa se esconder do presente? O que mais importa o passado, o presente ou o futuro?”.
S.H., com vinte e três anos e uma licenciatura em Filosofia e Literatura Inglesa, trocou o interior rural dos Estados Unidos da América pela ilha de Manhattan, com o objectivo de encontrar o herói do seu primeiro romance. “Mais do que uma personagem, ele era uma possibilidade rítmica, uma embrionária criatura da minha imaginação“. A descoberta da cidade faz-se com filmes e livros, com a “iluminação fantasmagórica que entrava pelas persianas estragadas”, os passeios de metro e a observação dos graffiti – “não pela sua beleza, mas pelo seu espirito rebelde, espírito que eu esperava assimilar e emular para os meus próprios fins artísticos”.
Os vagabundos e os pedintes, o prazer de passear pela zona de Times Square, os passeios em Greenwich Village – o epicentro do movimento contracultura nos 60 do séc. XX – possibilitavam recordar a “mitologia boémia” e procurar a “companhia do genial dadaísmo”, as bibliotecas e as livrarias – Coliseum e na Gotham Book Mart, na Book Company e na Strand -, onde demorava tempos infinitos. Ou a descoberta da “National Bookstore, em Astor Place, atulhada de fascinantes livros académicos, embrulhados em plástico para evitar a invasão de dedos de pessoas como eu, gerida por um tirano de cabelo branco, que controlava os minutos com o seu lápis tamborilante e refilava se nos demorássemos demasiado tempo a ver um livro”.
H.S, narradora versus protagonista, vagueava pela cidade, entre aventuras e desventuras, e tinha como companhia os heróis literários da adolescência, Dom Quixote, Tristram Shandy e Balzac, entre outros, e, dia após dia, ia transformando-se, enchendo a “cabeça com a sabedoria e a arte de todos os tempos”, cada vez mais próximo de realizar os sonhos.
S.H. regista os seus dias num diário, uma rotina que é uma forma de se relacionar com o tempo. No acto da escrita, não interessa o passado ou o futuro, apenas o presente: as datas, os locais frequentados, as pessoas, as emoções e os projectos a concretizar. Ao diário interessa a actualidade, pois o “passado é frágil, tão frágil como os ossos que se tornam quebradiços com a idade, frágil como fantasmas vistos em janelas ou sonhos que se desvanecem quando acordamos”. E ao leitor ,que tempo interessa?
Quarenta anos depois, a narradora reencontra o seu diário: “Saudei-o como se fosse um familiar querido de quem eu desistira por julgar morto: primeiro, a exclamação de reconhecimento, depois o abraço”. Que importância tem o diário? Permitirá dialogar com o tempo? Com os diferentes eus que fomos e que somos? A descoberta do diário e do rascunho de um romance inacabado permite redescobrir o seu herói, Ian Feathers, “uma personagem conjuntiva de asas e voo, de penas, canetas e máquinas de escrever”, que cresce acabando por dar lugar à sua confidente, Isadora Simon. Os heróis dos romances serão reais ou apenas seres imaginários? Fragmentos de memória? Serão parte de nós?
“Recordações do Futuro” é um jogo entre o real e o imaginário, o passado e o presente, o passado e o futuro, onde as relações pessoais, interpessoais e o feminino marcam presença. Não esquecendo a extravagante história da baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven, a artista dadaísta de cuja obra Marcel Duchamp se apropriou. Mas é, também, um livro sobre arte: a arte de escrever, de ser um excelente leitor, sobre o sonho de abraçar a arte. Estará o leitor perante um “retrato da artista enquanto jovem”?
Siri Hustvedt nasceu em Northfield, no Minnesota, EUA. Romancista, ensaísta e poeta., é conhecida pela sua militância feminista. Licenciada em História no St. Olaf College, em 1986, doutorou-se em Literatura Inglesa na Universidade de Columbia com uma tese sobre Charles Dickens. Em 2012, foi distinguida com o Prémio Internacional Gabarrón de Pensamento e Humanidades. Foi homenageada com doutoramentos honoris causa pelas universidades de Oslo, Stendhal-Grenoble e Gutenberg University-Mainz. Em 2019, foi-lhe atribuído o Prémio Princesa das Astúrias de Letras.
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