Artur é um tipo enfastiado com a vida. Alguém afundado em arrependimento, duvidando se terá acertado naquela que escolheu para ao lado envelhecer, tristemente habituado ao sexo mecânico ou pouco intuitivo e a viver num estado permanente de irritação.
O ponto final que decidiu colocar na sua vida antes do seu livro estar escrito parece uma certeza gramatical, isto até ao dia em que uma fotografia tirada no seu distante casamento semeia a dúvida no seu espírito e memória. Quem será aquele tipo com “o ar de eslava anemia, a aura de poeta no desemprego”, que parece respirar confiança entre a sua família e os seus amigos?
Perante o desconhecimento e o espírito evasão da mulher, Artur decide adiar a morte auto-imposta e regressar à casa de partida, decidido a desvendar quem será aquele galã do passado que se decidiu impor através de uma imagem granulada, um fantasma “pálido e belo” que a todos parece ter tocado naquele casamento de forma miraculosa.
Nesta sua demanda, Artur irá travar conhecimento com Ivan, uma espécie de consultor da morte e perito no adeus à existência, que tem para oferecer conselhos tão úteis como executar “uma limpeza minuciosa às tomadas com um pano húmido”.
Depois de uma estreia muito elogiada com “Quartos de Final e Outras Histórias”, uma colectânea de contos que contou com o selo da Elsinore, Cláudia Andrade serve-nos em “Caronte à Espera” (Elsinore, 2020), quase sempre na presença de um humor muito particular, de um vocabulário com perfume arcaico e metáforas afiadas por um amolador profissional, um romance carregado de mitologia e poesia em estado de inflamação, que dá conta dos danos visíveis do tempo e do medo da morte e alimenta “o grande incêndio interior” que habita cada leitor, numa visita guiada às “câmaras de tortura do desentendimento amoroso”. Temos escritora.
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