É um daqueles livros enormes que nasceu um pouco por acaso, e tudo graças ao espírito irrequieto de Catarina Gomes que, de forma acidental, descobriu uma caixa de cartão empoeirada, contendo objectos de antigos doentes do primeiro hospital psiquiátrico português, o Miguel Bombarda. Um lugar que, segundo a autora, foi “um grande recanto escondido que durante mais de século e meio foi um mundo apartado do mundo”, tendo acabado por afectar “pelo menos quatro gerações de homens e mulheres com perturbação mental”. Alienados e alienistas, encerrados dentro de “armazéns sobrelotados de desperança”.
O projecto inicial de Catarina Gomes era o de, entre milhares de desconhecidos que tinham passado pelo Miguel Bombarda, falar daqueles dos quais, pelas melhores ou piores razões, tinha ouvido falar, fosse o tenente Aparício Rebelo dos Santos, o homem que assassinara a tiro o médico Miguel Bombarda, José Júlio Costa, que matara o presidente Sidónio Pais, ou Ângelo Lima, poeta da mesma geração de Fernando Pessoa. Porém, perante a descoberta desta “cápsula de tempo”, Catarina decidiu mudar de rumo. “Estava naquele espaço à procura do excepcional na loucura e acabava por encontrar o absolutamente corriqueiro”, coisas que poderiam ter pertencido a qualquer um de nós, vidas que Catarina decidiu imaginar – e investigar – a partir dos objectos esquecidos no sótão do antigo “Rilhafoles”.
Um projecto que chegou a levantar algumas dúvidas a Catarina, dividida entre resgatar estas vidas do esquecimento e, ao mesmo tempo, estigmatizá-las neste exercício de perspectiva. Lendo “Coisas de Loucos” (Tinta da China, 2020), o leitor agradecerá a Catarina por ter feito este resgate, abraçando o seu fascínio por aqueles que “souberam aproveitar a loucura quase como fonte artística, o acesso directo a um poço onde alguns, pena serem tão poucos, podem lançar um balde e içar cá para cima a arte”.
São oito as vidas que fazem parte deste incrível documento, em mais uma belíssima edição da Tinta da China, que surge acompanhada de fotografias dos objectos identificados e outros soltos, deixados para o final numa galeria fotográfica com a assinatura de Paulo Porfírio – autor de todas as imagens do livro.
Nesta incrível viagem pela saúde mental, ficamos a conhecer Leopoldina de Almeida, doméstica no BI e modista por convicção, que ficou viúva aos 19 anos sem concretizar o desejo de emigrar. Mas sabia ler, isto numa altura em que 70 por cento da população era analfabeta; Noé Galvão, o “relojoeiro sem nome”, numa história com precisão de um relógio suíço que serve para traçar um mapa da história da epilepsia; Simão de Carvalho Proença, cujo gatilho da loucura terá sido accionado por uma transferência geográfica profissional – e que fez Catarina perceber que para compreender uma doença mental tão grave como a esquizofrenia não lhe bastaria ler; Manuel de Avelar Rodrigues, qualquer coisa como o “Tom Sawer de São Martinho do Porto”, capitão de longo curso e português naturalizado brasileiro; Valentim de Barros, um homem que um dia foi bailarino e mestre do crochet, um homossexual num tempo em que ser diagnosticado como tal “era sofrer de patologia grave, com causas, sintomas ou manifestações, formas de tratamento e, claro, prognóstico” – um estado que, segundo Egas Moniz era, em 1901, um “terrível e indecoroso vício”, cabendo aos médicos libertar estes infelizes; Clemente da Costa Santos, que queria ser engenheiro militar mas sofreu de demência precoce, num percurso de vida que nos mostra o olhar público sobre os asilos de mendicidade e a loucura perto da vista; Ricardo Vinte e Um, cujo apelido terá nascido a partir dos 21 filhos da sua avó, que foi internado por injúrias e difamação depois de uma ida frustrada ao Palácio de São Bento – e que afirmava ter o poder de fazer cair aviões; e Jaime Fernandes, pintor e artista que aproveitou o pouco espaço de manobra e os parcos materiais que tinha à mão para se tornar num “artista acidental”, representante maior daquilo que alguns chamam de arte bruta.
Através destas oito vidas, imaginadas e investigadas com lupa e cachimbo por Catarina Gomes, traça-se um retrato da saúde mental – e sobretudo da falta dela –, dos preconceitos enraizados e de costumes sociais implantados ao longo de dois séculos em Portugal, bem como deste lugar onde “poucos meios havia a oferecer aos doentes agitados. Os psicofármacos modernos só chegariam quase duas décadas depois da entrada de Jaime no manicómio, já na década de 1960. A instituição reconhece a sua impotência terapêutica. A própria mudança de nome, em 1945 – de Manicómio Bombarda passa a chamar-se Asilo Psiquiátrico (até 1948) – é sintomática. Em vez de tentar curar, admite-se que a sobrelotação e as más condições transformam a instituição em armazém de doentes incuráveis, em mero asilo”. Um livro de não ficção que se lê como um romance de época, e que resulta de um trabalho de investigação de se lhe tirar o chapéu. Se andam à procura de um bom livro, levem este pedaço de loucura para casa.
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