“O corpo foi encontrado na estranha posição que quase todos os jornais, impedidos de publicar as fotografias que lhes tinham sido enviadas às primeiras horas da madrugada, classificaram depois como grotesca.“
Usualmente, o romance policial vê-se encaixado na categoria dos contos ou das novelas. Francisco José Viegas surpreende-nos com “A Luz de Pequim” (Porto Editora, 2019), que se apresenta como um género misto, algures entre o romance e o policial. Temos assassinatos, investigações, interrogações e polícias, matéria que agrada ao leitor de policiais, mas também pensamentos intimistas ou uma busca pela identidade da parte do protagonista, que encanta o leitor de romances. O resultado é um livro denso, por vezes sombrio, taciturno e melancólico.
Tudo começa com a descoberta do corpo de Alfredo Aleixo, “suspenso daquela barra de ferro enferrujado da velha Ponte de D. Luís“, que leva à entrada em acção do inspector Jaime Ramos, que está “a ficar velho sem mostrar sinais de alegria, e que conhecia a penumbra da suspeita, uma desconfiança que as novas gerações usavam como método de gestão de recursos humanos”. O inspector, presença regular dos policiais de Francisco José Viegas, conhece bem a vida dos criminosos, os segredos da natureza da humana, os becos e ruelas do Porto que se estendem até Pequim. Entre crimes e criminosos, “A Luz de Pequim” cruza reflexões sobre a vida do protagonista em fim de carreira, a ingratidão do tempo face à sofreguidão da modernidade – “Não fazes os relatórios a horas, confias no destino, não respondes aos pedidos de informação, és um empecilho, fazes o que te apetece”-, ou a cruel velocidade do tempo, causadora de desigualdades e angústias.
Mas será que o tempo de Jaime Ramos já terminou? Com poucas certezas, apenas sabe que não trabalha, que não trabalhou “em homicídio para mudar o mundo nem para fazer do mundo um lugar melhor. É mais para castigar os criminosos e cumprir uma função. Crime e castigo. Punição. Vingança”. As incertezas metodológicas são a alavanca para repensar as suas investigações e paixões, a política e a militância, os amigos e os inimigos, fazendo dele um homem resignado e desencantado. Será este um livro sobre a decadência?
“Jaime Ramos lera apenas o essencial sobre a cidade durante a viagem do Porto a Amesterdão e Amesterdão para a China, atravessando o mapa da Rússia, a solidão da Sibéria, a estepe da Mongólia – e simpatizava com a ideia de Pequim querer dizer “ capital do Norte”.”
Do Porto a Pequim. Geografias distintas, na tentativa de repor “uma ordem nas coisas mesmo que o mundo não tenha essa ordem, para poderem tranquilizar as famílias, os leitores de romances e o seu gosto pela banalidade”.
Francisco José Viegas nasceu em 1962 no Douro. Editor, professor e jornalista. Responsável pela revista Ler. Foi director da revista Grande Reportagem e da Casa Fernando Pessoa. De Junho de 2011 a Outubro de 2012 exerceu o cargo de Secretário de Estado da Cultura. Colaborou em vários jornais e revistas. Os seus livros estão publicados em várias línguas.
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