De todos os acontecimentos do século XX, é comummente sabido que a guerra civil e a ditadura franquista marcaram a sociedade espanhola. Menos conhecidas serão, talvez, as suas relações com o nacional-socialismo alemão: a ajuda militar de Hitler ao golpe de Estado liderado pelo General Franco, que derrubou a Segunda República Espanhola e instaurou uma ditadura, foi retribuída anos mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial, quando o regime franquista, com a colaboração da Igreja Católica, disponibilizou identidades falsas a nazis procurados por crimes de guerra, permitindo-lhes habitar e prosperar em Espanha ou na América Latina.
Este foi o contexto histórico estudado por Almudena Grandes para escrever “Os Doentes do Doutor García” (Porto Editora, 2020), o quarto título de uma série de livros com enredos independentes, intitulada “Episódios de uma Guerra Interminável”, mas o primeiro publicado em Portugal, após ter sido galardoado com o Prémio Nacional da Narrativa e o Prémio Liber.
O Dr. García do título é Guillermo García Medina, herdeiro de uma burguesia culta, republicana e de esquerda. Após o golpe de Estado, os ideais políticos que nunca escondeu, bem como o facto de, como cirurgião, ter cuidado de muitos defensores de Madrid durante os bombardeamentos nazis, solicitados por Franco para vergar a cidade, colocam-no em risco de vida. É então protegido por um amigo, que lhe oferece outra identidade.
Tal amigo é Manuel Arroyo Benítez, filho indesejado de uma família pobre, que encontrou uma via de fuga à miséria e à falta de amor familiar na possibilidade de estudar com o pároco da aldeia. Graças ao seu mérito e a uma sucessão de mecenas, consegue ascender a uma carreira diplomática, através da qual procura sempre servir uma república acossada e levada ao exílio, aceitando até missões como agente infiltrado sob identidades alternativas. Manuel transmite a Guillermo o nome que usava na missão que quase lhe custou a vida e que o transformou num dos seus doentes, fazendo nascer uma amizade que é um dos motores da história.
É notória a simpatia da autora pelos perdedores da guerra civil. Todavia, isso não a impede de criar personagens realistas que militam no lado oposto, como Adrián Gallardo Ortega, o terceiro vértice que faz a triangulação da geografia humana deste livro. Filho dilecto de uma família camponesa que lhe inculca desde tenra idade o ódio aos comunistas, alista-se no exército franquista e chega a combater ao lado dos nazis, primeiro ao ataque na Rússia e mais tarde na defesa de Berlim, sem esquecer a colaboração pontual no extermínio dos judeus, que também o obriga a mudar de nome após a guerra.
Sabemos não se terem cumprido as expectativas republicanas de derrotar Franco através da pressão que a comunidade internacional poderia fazer ao tomar conhecimento de factos comprometedores. Todavia, isso não reduz o prazer de percorrer a teia intrincada que une as vidas das personagens deste livro. Além de um romance de espionagem, que atravessa décadas e continentes, cruzando figuras reais e fictícias, esta obra é uma admirável história de amizade e um hino à dignidade humana que persiste, mesmo quando a esperança é trucidada pela realidade.
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