Em 2006, a notícia do nascimento de um urso polar rejeitado pela mãe e criado pelos cuidadores do jardim zoológico de Berlim emocionou o mundo e agitou os activistas dos direitos dos animais. Yoko Tawada também não ficou indiferente à notícia: inspirou-se nela e escreveu “Memórias de um Urso-Polar” (Sextante, 2019), que nos induz a uma reflexão sobre o mundo animal e humano, as suas relações e implicações.
A grande qualidade da escrita de Yoko Tawada não reside apenas no enredo, mas na forma como a narrativa é construída e na apresentação de questões pertinentes da actualidade: a literatura, as relações do Homem com os animais – numa tentativa de compreensão mútua -, a emigração e as questões ambientais.
A autora japonesa, radicada na Alemanha, apresenta-nos a história de três gerações de ursos-polares: a avó, a filha Tosca e o neto Knut, que vivem no seio da sociedade humana, são estrelas no circo e no mundo literário. No primeiro capítulo, o leitor trava conhecimento com a avó, ficando a conhecer as razões que a levam à criação literária. “A escrita não era muito diferente de uma hibernação. Aos olhos dos outros, talvez desse uma impressão sonolenta, mas, na caverna de urso do meu cérebro, estava a dar à luz a minha própria infância e a tratar secretamente da sua criação”. A autobiografia obrigava a uma viagem interior, sensível e reflexiva. A escolha das palavras exigia muita energia e concentração, a descoberta da linguagem revela-se um poder valioso.
Yoko Tawada recorre ao estilo de Esopo, onde a voz humana e animal se confundem: “– É verdade que fala a linguagem dos ursos? – É só superstição pensar que os ursos podem roubar a alma de uma pessoa e que essa pessoa depois morre antes do tempo?”. Ao longo da narrativa há uma comunhão entre o humano e o animal. Ursos e humanos interagem, conversam, convivem, e nem sempre o leitor consegue distinguir estes dois mundos, cuja mescla serve de cenário para abordar a questão do circo, dos jardins zoológicos e da exploração animal que pode ocorrer nestes espaços, uma ideia expressa de forma muito clara logo nas primeiras páginas, onde se pode ler: ”Na altura havia na Alemanha Ocidental um movimento de protesto contra a exploração dos animais de circo. Os representantes do movimento afirmavam que a domesticação dos animais selvagens para o circo violava os seus direitos humanos e que no Bloco de Leste os animais ainda eram mais oprimidos do que o Ocidente”.
As preocupações com o aquecimento global são também abordadas com alguma ironia, apontando a hipocrisia com que as sociedades abordam o tema. A emigração apresenta-se de forma delicada e transversal na narrativa da autora japonesa. A utopia da fuga para um mundo melhor. Viver numa sociedade comunista ou capitalista não deixará indiferente o ser humano, pelo contrário, obriga-o a reflectir sobre educação, religião, sistemas políticos e, essencialmente, sobre a essência da humanidade, assim como da animalidade.
A leitura de “Memórias de um Urso-Polar” obriga o leitor a olhar para diferentes espelhos, questionando as diferentes imagens do ser humano, procurando o equilíbrio, a felicidade, o amor, o respeito e a igualdade.
Yoko Tawada vive em Berlim e escreve em japonês e em alemão. Foi galardoada com a medalha Goethe, o Prémio Chamisso e o prestigiado prémio literário japonês Akutagawa-Sho.
2 Commentários
O livro não é da editora Sextante é da editora Todavia
https://todavialivros.com.br/livros/memorias-de-um-urso-polar
Bom dia. A edição portuguesa é da Sextante. Cumprimentos.