Entre 1964 e 1968, e ainda que na altura não o tivesse visto como tal do alto dos seus dezasseis anos, Alberto Manguel foi um dos privilegiados que teve a sorte danada de ler para Jorge Luis Borges, um dos grandes génios da literatura mundial.
Num apartamento escuro, abafado, quente e com um perfume doce, Manguel pôde conhecer de perto “um dos maiores leitores do mundo”, cuja cegueira, prevista desde a nascença, começou progressivamente aos 30 anos e se instalou definitivamente depois de fazer 58. Um mundo que a certa altura passou a ser inteiramente verbal, um lugar onde a música, a cor e a forma raramente entravam.
“Com Borges” (Tinta da China, 2020), uma edição da Tinta da China em formato quase de bolso e uma paginação irrepreensível – as margens brancas largas revelam-se muito úteis para escrever anotações -, é um livro-homenagem de Manguel a Jorge Luis Borges, um livro de memórias afectivas feito de vivências domésticas, conversas, leituras e releituras, reflexões e uma partilhada e renovada curiosidade pela vida e, sobretudo, pelos livros.
Curiosamente, a biblioteca de Borges terá sido bastante discreta, um reflexo de alguém que não se gostava de exibir e que tinha um forte amor aos policiais, não desdenhando o melodrama. Na essência das suas leituras descobrimos enciclopédias e dicionários, e autores como Stevenson, Chesterton, Henry James e Kipling – mas também vários livros de H.G. Wells ou romances de Eça em encadernações de cartão já amareladas. Não tinha quaisquer livros seus, apesar de os conhecer de memória – Manguel conta um episódio deliciosos onde Borges acaba a corrigir um jornalista num verso, chegando depois a completar o poema inteiro de memória.
Alberto Manguel conduz o leitor numa viagem pessoal e fascinante ao universo de Borges, um escritor que tinha o tema épico como fonte primordial, assim como a necessidade de amor, felicidade ou infortúnio. Um sentimentalista despudorado que, segundo Manguel, também poderia ser “deliberadamente cruel” ou mostrar “um racismo absurdo e vulgar”, e cuja escrita ia beber aos sonhos e a dois pesadelos recorrentes – os espelhos e o labirinto -, acreditando que todos os livros, qualquer livro, contém a promessa de todos os outros – assim como a ideia de que também um só livro pode conter todos os outros. Borges que considerava a política “a mais miserável das actividades humanas” e a opinião como “o aspecto menos importante de um escritor”.
O livro contém ainda um posfácio à edição portuguesa, regressando a 1924 e ao ano em que Borges conheceu António Ferro, o membro mais novo do círculo do Orpheu, “o único escritor português deste século XX que conheci, tratei e estimei”. E onde se percebe que o escritor argentino adorava Eça mas Camões nem por isso, apesar de achar interessante e bonito o final de Os Lusíadas.
“De Foucault e Steiner a Godard, Eco e ao mais anónimo dos leitores, todos herdámos a vasta memória literária de Borges”, diz Manguel a certa altura sobre a generosa concepção da literatura de Borges (que este partilhava com Montaigne, Sir Thomas Browne e Laurence Sterne), e que se reflectia numa biblioteca autobiográfica – como a de qualquer leitor – que adoptava a crença no acaso e nas leis da anarquia: “Sou um leitor hedonista: nunca permiti que o meu sentido de dever se imiscuísse num assunto tão pessoal como é a compra de livros”. A admiração de Manguel por Borges é também a nossa.
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