“A maioria dos machos, na sua simpleza, julga que isto de sexo é apenas estímulo cadenciado de terminais nervosos.”
A afirmação é de Marta, que achava a maioria dos homens básicos, primários e falhos de alcance, inábeis no sonho, na fantasia, no jogo e na inovação, logo ela que não se coibia em efusivamente saciar o desejo.
Numa centena de páginas, três partes e onze textos, Mário de Carvalho revela em “Epítome de Pecados e Tentações” (Porto Editora, 2020) o pensamento luxuriante de personagens anódinos, materializado em episódios inquietantes e sobressaltados pela imprevisibilidade do fascínio, do acto e das sensações experimentadas.
Acompanhar a narrativa do autor é como se espreitássemos a intimidade de homens e de mulheres – mais a delas, pois o discurso é-lhes maioritariamente atribuído, sem que isso represente invasão da privacidade. Em quase todas as histórias há conforto na revelação e afirmação de determinada forma de viver a libido e o sexo. Pese embora a revolução sexual dos idos anos 60 do século passado, deixando a mulher de aparecer como objecto de desejo sexual para ser também ela a promotora e a protagonista de prazer, longo tem sido o caminho da revelação e da aceitação pública de mudança comportamental, e esparsas são as produções literárias em que esse protagonismo surja tão democratizado.
Ainda que breviário, em todos os relatos que compõem este livro há um hábil balancear entre o erotismo e a transgressão, como se um fizesse parte inequívoca do outro, vivendo em reciprocidade, sugerindo-se que se identifique, para uma qualquer catalogação, as palavras-chave tentação, provocação, sedução e imaginário erótico, sexual e linguístico.
Mário de Carvalho serve-se da linguagem verbal e não verbal dos seus personagens como principal veículo da sedução e do erotismo. Realidade, contos ou narrativas imaginárias, em cada história acompanha-se a comunicação entre amantes, por sinais e códigos quase sempre traduzidos na subtileza da linguagem corporal, reconhecida por quem partilha as convenções (ou a ausência delas) da sedução, uma linguagem natural ou um sistema de códigos composto por relações de sentido, umas ocasiões reconhecido por ambas as partes (como se espera) outras nem tanto, revelando-se uma confusão de morfemas ou reacções desconexas.
Como já nos vem habituando, eis-nos pois perante o audaz, diversificado e multiforme Mário de Carvalho, senhor de uma vasta produção literária entre romances, novelas, contos, teatro, folhetim, infanto-juvenil e ensaio. Leitores ocasionais ou menos experimentados encontram neste “Epitome de pecados e tentações” o prazer de tomar contacto com duas facetas do escritor: uma primeira parte com uma escrita mais densa e intensa, impelindo a atenção para além do encadeamento da ação também para o léxico; e uma segunda e terceira partes nas quais a loquacidade ágil e escorreita em relatos breves prendem pela depuração do acessório.
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