“Nunca serás interessante”, diz uma das personagens a Vivian, a protagonista de “A Cidade das Mulheres”(Suma de Letras, 2020). Esta frase, que poderemos facilmente utilizar para alegar que a autora tinha noção da personalidade por si criada, reforça a ideia de que “um livro bom deve acompanhar uma personagem extraordinária ou uma personagem medíocre”. Entendemos, ainda que sem que o tenhamos feito por palavras, que tudo o que se encontre entre estes extremos é, simplesmente, aborrecido.
Desenhado com tintas coloridas dos anos ’40 no coração dos Estados Unidos, este livro é descrito como sendo glamoroso, vibrante, pleno de humor. Recuemos a essa década na cidade que apaixonou Stanley Kubrick, que nessa década retratou (literalmente) alguns dos momentos mais marcantes dos anos ’40 na cidade que nunca dorme: o interesse pela arte, a recuperação económica, os eventos sociais. O mesmo fez Charles Weever Cushman, um fotógrafo amador que captou a essência de NI e permitiu que se criasse um quase inigualável arquivo histórico. Decorria a Segunda Guerra Mundial e discutia-se sobre a participação dos EUA. Jovens foram enviados para a Europa. Instalou-se o medo. Mas tarde, Wall Street estabeleceu-se como um dos maiores centros financeiros mundiais. Lembremo-nos ainda dos Loucos Anos 20, década de explosão cultural e social que deixou marcas indeléveis na história da cidade: o crescimento do Jazz, o estabelecimento do rádio como principal meio de comunicação, enquanto o jornalismo em papel se redefinia para não ficar para trás, o impacto do cinema na vida dos espectadores e sua influência no teatro, a ruptura de barreiras pela arte, o crescimento na criatividade literária, o sufrágio e o feminismo, o início de uma fase marcante na revolução sexual, e tanto mais.
Onde se enquadra “A Cidade das Mulheres”? Coloquemos as coisas desta forma: se somos desafiados a ler sobre as memórias de uma mulher nos anos ’40, e se considerarmos que essa década tanto deixou para a História, por que ficamos focados apenas na personagem em si? O resultado é uma narração da vida de uma pessoa que se tenta descobrir mas que, nas suas raras reflexões, entende que é desinteressante e que isso não faz mal. Porque a vida é mesmo assim.
O início do livro é, para quem aprecia os pormenores de estrutura e de realismo, uma decepção. Recorrendo a um exemplo dado por Stephen King sobre este último tópico, o realismo é da maior importância para que o leitor consiga acreditar na história. Entrar no livro. Isto é crucial para quem aprecia ficção. Embora Elizabeth Gilbert tenha criado uma história relativamente interessante para “A Cidade das Mulheres”, a concretização deixa muito a desejar. Temos a nossa protagonista idosa, logo no início do livro, que recebe o pedido da filha de um amigo: “Agora que os meus pais morreram, que relação tinha com o meu pai?”. Isto é o momento catalisador para que esta velhota escreva uma carta (na verdade, um livro…) com os mais ínfimos pormenores da sua vida: a sua vida familiar, enquadrada num contexto social elevado; a procura pela identidade na adolescência e as suas consequências na vida académica; a decisão (enigmática) dos pais para que Vivian, com 19 anos, se mude para a louca Nova Iorque para viver com uma tia boémia que gere um teatro local; e, a partir daí, a descrição do seu desenvolvimento sexual. Vivian, já sabemos que dormes com todos. Por favor, responde ao que te perguntaram. O tom com que Vivian conta a história, e a quantidade de pormenores e de diálogos acontecidos 60 anos antes, antecipam aquilo que confirmamos ao longo dos capítulos: a personagem não cresce.
A narrativa acompanha Vivian na Nova Iorque dos anos ’40, mas o desinteresse total da personagem face aos acontecimentos locais e globais leva a que o leitor receba apenas pequenas notas sobre o contexto. O objectivo não era a criação de um romance histórico, é certo, mas a superficialidade talvez seja demasiada. A autora recorre às personagens para exemplificar alguns dos principais acontecimentos das décadas da sua juventude e idade adulta, como a homossexualidade (porque tem amigas homossexuais), a liberdade sexual (porque entendeu que não tem de ser uma boa menina), o casamento entre pessoas de diferentes raças (porque conhece um casal que…), o impacto da Segunda Guerra Mundial (porque o seu irmão não sobreviveu), entre outros. Mas o sexo, a moda, o álcool e o teatro são os principais ganchos, o que é óptimo para quem procura um livro ligeiro e divertido. Gilbert can talk the talk, but can’t walk the walk (bem, neste caso talvez até seja o contrário).
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