“Tendo eu dezoito na altura e tendo crescido num lugar onde a violência explodia à mínima coisa e onde a regra era que, não havendo abuso físico ou insulto verbal declarado, não havendo sequer um olhar sugestivo, então nada se passava, como podia eu estar a ser vítima de algo que nem sequer estava a acontecer? Aos dezoito anos, eu ainda não tinha um claro entendimento do que era ser importunada, Setina quando isso acontecia, era intuitivo, algumas situações e algumas pessoas faziam com que eu me enchesse de repulsa, mas eu não sabia que a intuição e a repugnância contavam, não sabia que tinha o direito de não gostar daquilo e que não era obrigada a tolerar que um qualquer me abordasse daquela maneira.”
Imaginem um romance cheio de camadas, ao estilo de um orweliano 1984 mas com laivos de humor negro, e que nas entrelinhas aborde, de forma algo fantástica, o conflito entre as duas irlandas. Parece complicado, mas a verdade é que o feito foi conseguido por Anna Burns, escritora nascida em Belfast em 1962 e que, com “Milkman” (Porto Editora, 2019) levou para casa o prestigiado The Man Booker Prize 2018, tendo o júri descrito o romance como “uma história de brutalidade, intromissão sexual e de resistência tecida com humor mordaz”.
O livro regressa cerca de duas décadas atrás na linha temporal, até uma cidade sem nome, onde se vivem tempos de paranóia e existe, nas palavras da irmã do meio – a protagonista de Milkman -, “o lado deles” e “o nosso lado”. Um lugar onde o medo impera, vivendo-se numa ordem imposta e assegurada por paramilitares, onde se respira uma masculinidade tóxica e se condena os casais que não casaram. Um lugar onde se casa muito cedo – normalmente ainda na adolescência – e se sente o peso descomunal da religião, rezando-se várias vezes por dia e sempre a horas certas, e onde ninguém se terá alguma vez lembrado de ir ver o pôr-do-sol.
A irmã do meio tem um namorado mais ou menos – um acumulador de tralha até ao tecto -, e o seu nome faz parte da lista dos inaptados, em grande parte graças ao facto de gostar de ler enquanto anda pelas ruas, dando conta dos disparos fotográficos de máquinas escondidas e vigilantes.Porém, a partir do momento em que o leiteiro a aborda e começam a ter conversas de circunstância, a irmã do meio ganha o estatuto por ela não desejado de ser interessante, o que lhe confere uma atenção que, nesta cidade, implica um perigo acrescido.
Anna Burns recria de forma bastante original uma Irlanda estilhaçada, desconfiada, implacável, onde se vive a “recusa em ouvir, a teimosia, a inflexibilidade e aquele entrincheiramento tão revelador da própria turbulência dos tempos”. Mas talvez o mais fascinante seja o retrato que a escritora faz da condição subserviente da mulher, cujo papel esperado é não o de viver um romance mas, antes, o de cumprir os verdadeiros propósitos da vida real: “…ter bebés da nossa religião e obrigações e limitações e obstáculos e dificuldades”. Ou como quando, a certa altura e de um só fôlego, apresenta uma lista de injustiças históricas, de uma violência demente, cometidas contra as mulheres: “as bruxas queimadas na fogueira, os pés enfaixados das chinesas, as mulheres queimadas vivas juntamente com os maridos mortos, as mulheres mortas por conduta imoral, a mutilação genital feminina, a violação, as mulheres que casavam ainda crianças, os apedrejamentos, o infanticídio feminino, as experiências ginecológicas, as mortes no parto e no pós-parto, a escravatura doméstica, as mulheres tratadas como posses, como gado reprodutor, como objectos, as raparigas que desapareciam, as raparigas que eram vendidas e todos os demais escândalos e preceitos sociais e culturais e religiosos e tribais no mundo inteiro, além da demonização de toda a mulher que pensasse ou dissesse alguma coisa que a história patriarcal ditasse ser invulgar uma mulher pensar ou dizer”. Ou, ainda, quando com um humor para lá do negro fala dos tipos de violação criados pelo governo, que arranjou forma de as subdividir em categorias: “…havia agora a violação integral, três quartos de violação, a meia violação e a quarta parte de uma violação”, o que ajudaria o governo a decidir o que seria ou não violação.
A voz de Anna Burns é distintiva, numa prosa imersiva e exigente, onde há parágrafos que chegam a durar várias páginas, sempre num estilo irreverente, político, inteligente e de humor refinado, num livro que é um hino ao pensamento livre, uma farpa aos políticos, uma busca desesperada por um amor verdadeiro – seja ele enorme ou apenas mais ou menos.
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