Geovani Martins nasceu em Bangu, um bairro na zona oeste do Rio de Janeiro e, antes de se dedicar inteiramente à escrita, foi pagando as contas trabalhando como homem-sanduíche, empregado de mesa ou ajudante em barracas de praia. Nascido e criado nas favelas cariocas, Giovani evoca essa vivência em “O Sol na Cabeça” (Companhia das Letras, 2019), um conjunto de histórias que nos mostra a textura da vida diária nas favelas, sempre entre a esperança e o desespero, mas onde o (des)humano está sempre na linha da frente.
A linguagem de rua é a dominante nesta colectânea – há mesmo um glossário para que o leitor não se perca -, num vocabulário que inclui palavras ou expressões como boladão, camelô, caxanga, andolar, esculachar, futum ou meter a nareba. Uma colectânea onde as histórias parecem ser-nos contadas em voz alta, carregadas de oralidade e num ritmo sempre frenético, conduzindo-nos a um mundo violento e perigoso onde há crianças que trocam as bonecas por armas, polícias que se julgam os donos do mundo, bandidos que se divertem a roubar estrangeiros ou velhinhas dedicadas a desencantar a melhor macumba depois de a noite se instalar.
A arma de fogo surge como o primeiro passo para o diálogo em Espiral, que fala do abismo cravado entre as fronteiras geográficas e dos muros que vão crescendo à medida que as crianças se transformam em adultos.
O caso da borboleta aborda o medo do crescimento e a antevisão do futuro através da metáfora, onde os adultos viram homens e não borboletas, incapazes dessa epifania do voo.
A busca de afirmação e o desempenho do papel de durão estão no coração de Primeiro dia, onde “ter um estojo, sentar na frente, responder as perguntas do professor, são péssimas ideias pra quem pretende ser respeitado na escola”.
Em Roleta-Russa, o revólver na casa que não era segredo surge como o substituto de tudo o resto, num jogo entre polícias e ladrões onde a verdade é relativizada e a tragédia é iminente.
A história do periquito e do macaco, provavelmente o conto em toda a história da literatura onde se pode ler mais vezes a palavra bagulho, apresenta-nos a “um filho da puta de um tenente que chegou metendo bronca”, e que desancava em todos aqueles que vendiam ou usavam drogas.
“O rabisco tem a ver com eternidade, marcar a passagem pela vida”, lê-se em O Rabisco, história que põe à prova o sentimento e o dever de paternidade.
Em A viagem comem-se camarões, fumam-se baseados e mandam-se ácidos, numa bad trip de fim de ano que revela um mantra muitas vezes certeiro: “Certas coisas devem realmente permanecer como sempre foram”.
Rolézim mostra que há drogas boas e drogas más, fugindo-se à polícia sem chinelo no pé depois de uma valente moca de baseado.
Na Estação Padre Miguel questiona-se se as amizades construídas na adolescência poderão sobreviver à idade adulta, enquanto se tecem alguns mandamentos sobre a economia carioca: “Uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para”.
O Cego revela-nos uma amizade pouco íntima, regada com muita maconha e linhas de cocaína.
O mistério da vila apresenta-nos à rainha da macumba, “uma santa quando o dia é claro”, uma história onde o sobrenatural apenas surge muito depois do pôr do sol.
Sextou arranja forma de fazer um manguito ao clássico “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, onde a polícia é quem mais ordena.
A fechar temos Travessia, com um final em aberto onde vale mesmo tudo – e que parece ter sido o motor de arranque para que Giovani Martins transformasse a sua vida em escrita: “Agora, enquanto desce a ladeira pra chegar na saída do morro, só consegue pensar que tudo vai ser muito diferente”.
Histórias de alguém com um ouvido muito apurado e a capacidade de transformar, em literatura com o embalo de um thriller, o confronto com a crueldade, mostrando de que forma esta cidade maravilhosa vai tratando de varrer o sangue para debaixo do tapete.
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