“Naquela manhã, ao acordar, Jim Sams, esperto, mas algo leviano, depois de uma noite cheia de sonhos perturbadores, viu-se transformado numa criatura gigantesca.”
É neste espírito Kafkiano e apontado à Metamorfose do corpo que Ian McEwan, o mago inglês da literatura que lhe veste qualquer pele ou género sem nunca perder a classe, inicia o curtíssimo – qualquer coisa como 110 páginas – mas muito sumarento “A Barata” (Gradiva, 2019).
Ao contrário dessa Metamorfose Kafkiana, a mutação dá-se aqui com uma inversão da espécie, mantendo-se a mesma perda de identidade que, em 1915, assolava Gregor Samsa. Ao transformar-se de barata em humano, Jim Sams sente que “passara a ser um elemento minúsculo de um esquema cuja magnitude estava para lá do entendimento de qualquer indivíduo”, onde o eu se desvanece para dar primazia ao espírito colectivo.
De barata a humano, ou de cidadão dos lugares imundos a Primeiro-Ministro do governo inglês, Jim sente ter ficado menos inteligente com esta transformação, caracterizando de forma mordaz o funcionamento da Casa dos Comuns e a sua propensão para assumir os destinos da nação: “A quantas sessões dessas tinha assistido, encantado, escondido atrás dos lambris poderes, na companhia de alguns milhares de conhecidos seus, devidamente seleccionados? Como estava familiarizado com as perguntas gritadas pelo líder da oposição, com as brilhantes respostas non sequitur, os risos mordazes e as ostensivas imitações de ovelhas a balir. Seria verdadeiramente um sonho tornado realidade ser o primo uomo naquela opereta semanal. Mas estaria devidamente preparado? De certeza que não estava menos preparado do que qualquer outro”.
Com Jim Sams ao volante, a Inglaterra muda de rumo e recupera os tempos do regressismo puro e duro, que impõe a circulação inversa do dinheiro e adopta, como orgulhoso slogan, um “Voltem o dinheiro ao contrário!”. A partir daqui, as lojas pagam aos clientes aquilo que eles compram e, quanto aos clientes, têm de pagar pelos seus empregos. O que leva a que os impostos subam para as pessoas com poucos rendimentos e sejam bem mais amigos para quem carrega carteiras recheadas.
McEwan saca de toda a sua ironia e humor negro para nos brindar com um retrato do apocalipse moderno instalado hoje em dia em muito boa democracia, onde os populistas e fascistas, que nos últimos anos viveram na escuridão e na obscuridade, tal como as baratas, renascem agora sem medo ou vergonha, atirando-se ao poder depois de se terem familiarizado com “as condições subjacentes a essa ruína humana”.
Não falta aqui um pacto estabelecido com os amigos americanos, um olhar sobre as alterações climáticas ou referências na mouche à manipulação e morte da imprensa, lugar onde triunfa o sensacionalismo e se fecham os olhos às notícias que não vendam, não façam sangue ou não sejam um incitamento ao insulto. Sempre brilhante, este McEwan.
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