Os anos passam e a vida continua. Lugar comum e, ainda assim, pensamento tão relevante para quem valorize mais do que o frenesim do agora. Annie Ernaux demonstra-o de forma magistral em “Os Anos” (Livros do Brasil, 2020), desenvolvendo as memórias do mundo e da vida expressas por uma mulher parisiense, que nos incita a acompanhá-la num intervalo temporal de cerca de 60 anos – entre o final da Segunda Grande Guerra e o pós 11 de Setembro.
Memórias dos grandes conflitos bélicos, das grandes convulsões políticas, sociais e culturais, da capacidade de cada um apropriar-se e integrar a mudança do mundo na sua própria evolução individual. O poder do detalhe vivido e guardado, por vezes ocultado, outras partilhado, mas sempre presente na capacidade de existir.
O poder e a influência da memória no sujeito, na família e na comunidade, e a forma como, a partir da mesma, se perscruta o futuro. Haverá futuro sem passado? Annie Ernaux demonstra que não; que é ilusória a desvinculação relativamente ao vivido, aprazível ou traumático; que é poderosa a influência da bagagem que cada um traz consigo, seja ela a formas de vestir, de comer, de falar, de se comportar, de se sentir como parte integrante de algo, mesmo que se deseje o distanciamento.
A evidência de que só é possível a individualização se a montante tiver existido a coesão e comunhão de algo, experiência ou tão só pensamento. A clarividência de interconexão entre o eu e os outros em família e entre povos ou países. A demonstração de como a globalização há muito que existe, mesmo quando os povos teimam em fechar-se em si, autoproclamar-se na pureza imaginária e na preservação identitária.
“Os Anos” é uma poderosa viagem inter-geracional, numa narrativa que balanceia o relato autobiográfico com o posicionamento ensaísta. Neste balancear, França é politicamente esventrada, de Gaulle a Chirac; social e antropologicamente revelada, do vazio do pós-guerra ao consumismo exacerbado do século XXI, do valor das crenças ao poder das coisas, da primazia do divertimento relativamente aos ideais, da hipervalorização do presente e da atenuação do passado. Viver passa a ser uma corrida atrás da ânsia de posse e de antecipação do futuro, no tempo das coisas.
Annie Ernaux é actualmente uma das vozes mais pujantes da literatura francesa, repetidamente galardoada nacional e internacionalmente. Com “Os Anos”, escrito em 2008, venceu o prémio Marguerite Duras e foi finalista do prémio Man Booker Internacional.
“Como o desejo sexual, a memória nunca acaba. Ela acasala os mortos com os vivos, os seres reais com os imaginários, o sonho com a realidade.”
Os anos passaram e a vida continuou, na vida de todos, mas muito especialmente na vida de uma enigmática figura que concretizou o seu projecto de escrita, uma mulher que viveu desde 1940 até aos nossos dias. Os anos passaram e a memória, essa, perdurou.
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