No que diz respeito à banda desenhada contemporânea, Jeff Lemire é um dos seus grandes representantes e inventores. Para além de romances gráficos como Essex County, The Underwater Welder, The Nobody, Sweet Tooth ou Trillium, Lemire é também um dos nomes que assinam algumas das mais castiças séries do universo dos comics, tais como Descender, Gideon Falls ou Black Hammer – estas duas últimas valeram-lhe o Prémio Eisner para Melhor Nova Série.
Acabada de chegar às livrarias nacionais, “Roughneck: Um Tipo Duro” (G. Floy, 2020) é uma novela gráfica escrita e desenhada por Jeff Lemire, que nos mostra, no mergulho da imensidão canadiana, um conflito interior alimentado pela auto-destruição, de súbito abalado pelo surgimento do desejo de dar um passo em frente e de arrumar com um passado problemático que, só por milagre – e com o olhar para o lado das autoridades – não acabou num cenário onde o sol era visto aos quadradinhos.
A acção decorre em Pimitanon, uma pequena e remota vila no Norte do Canadá, lugar onde vive Derek Ouelette, uma antiga lenda do hóquei cuja carreira terminou em desgraça, depois de um incidente tão violento que mereceria a bolinha vermelha no canto superior do ecrã durante as repetições televisivas. No tempo presente, Derek mantém um trabalho ao estilo de uma linha de montagem num restaurante local, alimentando o seu mau-feitio com muito álcool, tabaco barato e rixas com quem se arrisca a dizer coisas como “acho que não és tão duro como dizem por aí”.
A sua vida é virada do avesso quando a irmã Beth aparece fugindo a um namorado abusivo. A melhor solução parece ser a de se esconderem numa cabana na floresta, uma daquelas que poderia facilmente fazer parte de um livro de Stephen King, mas o isolamento apenas irá servir para trazer de volta todos os fantasmas que cada um deles tem tentando esconder debaixo do tapete.
Jeff Lemire capta de forma surpreendente o mundo interior de Derek, sobretudo nas muitas tiras silenciosas onde observamos o seu mundo rotinado, a forma quase vegetal de se comportar perante o mundo, os fragmentos que o transportam ao passado – passado esse que Lemire apresenta de forma colorida, surgindo de forma avassaladora perante uma novela gráfica que vive, quase exclusivamente, de um triângulo composto pelo preto, o branco e o azul, apenas quebrado pelo vermelho do sangue e da raiva.
Uma história tocante e violenta, sobre redenção e superação, que confere humanidade a vidas que habitualmente se vêem confinadas ao abandono e ao esquecimento – e onde cabe ao leitor preencher os muitos silêncios e introspecções. Jeff Lemire continua em grande.
Sem Comentários