As guerras, quando observadas e analisadas a uns bons anos de distância, podem fazer emergir pessoas, acontecimentos e experiências que estão muito para além da distinção linear entre o bem e o mal, o certo e o errado, os vencedores e os derrotados.
Kate Atkinson inspirou-se em publicações do MI5 (serviço britânico de informações de segurança interna e contra-espionagem), arquivadas nos National Archives. Foi lá que descobriu a história de um agente secreto britânico que, durante a II Guerra Mundial, se infiltrou nos círculos fascistas britânicos e simpatizantes nazis, com o objectivo de vigiar a quinta-coluna – expressão usada para se referir a grupos clandestinos que actuam dentro de um país ou região prestes a entrar em guerra (ou já em guerra), ajudando o inimigo, espionando ou fazendo propaganda subversiva.
O ambiente recriado no durante e pós-guerra conduz-nos a vários ambientes: dos programas radiofónicos da BBC ao racionamento e dificuldades de acesso aos bens de primeira necessidade, das formas de diversão ao estilo de relacionamentos amorosos e sociais mas, particularmente, ao complexo tecido de actividades e pessoas envolvidas no contexto de guerra.
Em “Transcrição” (Bertrand, 2020), Atkinson retrata bem o papel das mulheres na época, em funções que, sem grande aparato – e algumas delas tendo permanecido na clandestinidade até ao presente -, as levaram a participar com risco, coragem e uma boa dose de ingenuidade (perdida progressivamente) no “jogo” da guerra.
A figura principal é Juliet Armstrong, de 18 anos, que em 1940 é recrutada para o mundo da espionagem, a par de muitas outras raparigas para vários serviços à pátria. A ela, destinam-lhe a função de transcrição dos diálogos resultantes das escutas de um grupo da quinta coluna mas, rapidamente – e tendo em conta o seu potencial -, recebeu também missões para actuar como infiltrada no universo dos nazis britânicos. O final das missões ou actividades clandestinas/ilegais parece manter-se agarrado ao esqueleto e à alma, e é esta a máxima que se mantém presente ao longo dos vários registos desta obra.
Kate Atkinson, distinguida com o título de Membro da Ordem do Império Britânico pelos serviços prestado à literatura, leva-nos para uma época histórica com (ainda) muitos acontecimentos com um potencial digno de muita obra literária, em particular pelas áreas mais invisíveis que existem ainda por revelar, com contornos obscuros e tonalidades subtis relativamente à diversidade e complexidade dos seus actores.
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