Lançado em Portugal no ano de 2015, “Cifra” foi um pequeno achado literário: um livro atravessado por narradores sombrios, cheio de pontas soltas e caminhos quase sempre incertos, que arriscavam um passeio entre as areias movediças do thriller de espionagem, o (falso) romance histórico e o policial matemático.
O autor dava pelo nome de Mai Jia, nascido numa pequena aldeia das montanhas no Leste da China no ano de 1964. Mai Jia alistou-se no Exército, sendo incorporado numa divisão de inteligência militar da Academia de Engenharia e, durante os 17 anos por lá passados, escreveu contos e peças de teatro, além de trinta e seis volumes de um diário que, até aos dias de hoje, continua inédito. Quanto a “Cifra”, editado originalmente em 2002, demorou dez anos a ser escrito, sendo o primeiro livro de uma trilogia de romances da qual fazem também parte os livros “Enredo” e “O Som do Vento”.
Curiosamente, a Quetzal optou já este ano pela publicação de um outro romance, intitulado “A Mensagem” (Quetzal, 2020), que volta a surpreender – nem sempre pelas melhores razões – pelas muitas voltas com que Mai Jia embrulha a narrativa, num livro onde o escritor surge como biógrafo, historiador, romancista e confessante.
A acção decorre em Hangzhou, perto de Xangai, um lugar com paisagens com o perfil de postais ilustrados, durante a II Guerra Mundial e a ocupação japonesa da China. Apesar da forte opressão a resistência continua, com um espião chinês infiltrado nas fileiras nipónicas, decifrando os códigos mais complicados como se fossem histórias para bebés.
Em 1941, cinco especialistas em código – Wu Zhiguo, Jin Shenghuo, Li Ningyu, Bai Xiaonian e Gu Xiaomeng – são conduzidos a uma vila em Hangzhou, ocupada pelo exército imperial japonês. São informados de que existe actividade comunista na área, e é-lhes dada a tarefa de decifrar uma mensagem interceptada. Uma tarefa que se revela canja, mas a verdade é que a mensagem lhes é dirigida, tentando apontar o dedo a de quem será, entre eles, o Fantasma. Confinados, como num Big Brother chinês, a uma casa onde há escutas e olhos em toda a parte, terão de decidir entre eles quem é a toupeira – caso contrário o cenário de tortura e morte é de todos o mais provável.
Porém, quando se esperava um cenário digno de um Torquemada do oriente, Mai Jia troca-nos as voltas e transforma “A Mensagem” numa narrativa meta-ficcional, discorrendo sobre o processo criativo, a pesquisa histórica ou partilhando aquilo que ouviu do único sobrevivente transformado em literatura. Sempre numa navegação entre a primeira e a terceira pessoa, onde nas entrelinhas se lêem algumas críticas à Revolução Cultural do país.
Um livro onde o escritor fala das dificuldades que teve no andamento romance, dos vários momentos em que a coisa esteve prestes a dar para o torto, mas onde, também, não deixa de tecer elogios a si próprio pela resiliência mostrada. Como quando, no fechar do pano, recorda uma buganvília que cresceu em condições difíceis: “recorda-me que tenho de ser generoso, manter-me forte e não desistir com muita facilidade”.
A prosa não é incrível, mas é curiosa a forma como Mai Jia vai trocando as voltas aos leitores, passando com facilidade do thriller ao diário, do romance a um manual de história. Uns furos abaixo de “Cifra” mas, ainda assim, um livro que vale bem a pena ler pela sua imprevisibilidade e cruzamento de géneros literários.
Sem Comentários