Nestes tempos de quarentena, em que viajar por terra, ar ou mar é algo que nos está vedado, que tal apanhar a máquina do tempo à boleia com “O Pintor das Almas” (Suma de Letras, 2020), regressando a Espanha no despontar do século XX?
Este estonteante romance de Ildefonso Falcones, autor dos best-sellers “A Catedral do Mar” e “Os Herdeiros da Terra”, leva-nos numa deliciosa e imersiva viagem por uma Barcelona de contrastes, em convulsão política, ao mesmo tempo que serve de palco à expressão de uma profusão de correntes artísticas que nos estimulam os sentidos, fazendo lembrar o universo de Álvaro de Campos.
Dalmau Sala é um jovem pobre, filho de uma costureira e de um operário anarquista injustamente condenado e executado por um ataque bombista, que cai nas graças de um rico ceramista burguês. Trabalhando na fábrica de cerâmica de Dom Manuel Bello, Dalmau depressa percebe que os seus talentos artísticos vão muito além do talento para a pintura: possui o incrível dom de capturar as almas dos seus retratados na tela.
A partir daqui, Dalmau ascende a um mundo a que jamais pensaria ser possível chegar, onde se cruza com nomes de vulto como Gaudi, Domenech e Picasso – e onde tem oportunidade de ver, em primeira mão, o nascimento de grandes obras do modernismo barcelonês, como a Sagrada Família e o Palau de la Música, deixando-se a pouco e pouco deslumbrar por esse admirável mundo novo, perdendo também ele a própria alma e as raízes. Todavia, depressa irá descobrir que quanto maior a subida mais vertiginosa é a queda, não tardando a cair numa espiral de álcool, drogas e decadência. Conseguirá o Pintor das Almas recuperar a sua própria?
Ao mesmo tempo acompanhamos a luta de Emma, namorada de adolescência de Dalmau e, também ela, órfã de anarquistas, lutando por se afirmar num mundo de homens e desafiando, sem medo, os poderes constituídos que oprimem os operários – a Igreja e a Monarquia -, acabando por se tornar num dos símbolos maiores da causa republicana e operária.
A viagem faz-se por uma Barcelona plena de contrastes, onde “a magnificência na construção de edifícios e até na forma de pensar de uma considerável da burguesia barcelonesa, coexistia a miséria característica da Revolução Industrial. Ao mesmo tempo que uns aplicavam as suas finanças num alarde competitivo de sumptuosidade, a mole operária, profundamente empobrecida e explorada, começava a tomar consciência do seu poder político bem para além dos postulados anarquistas (…). As greves, as manifestações e as reivindicações sociais (…)”, inspiradas pelo exemplo da vizinha França, sucediam-se, enquanto os ricos e os poderosos observavam placidamente o caos das suas varandas por entre bailes, saraus e outros convívios sociais.
Papel activo tomaram as mulheres na revolução operária, encabeçando as manifestações com os filhos a tiracolo para impedirem a violência da polícia e do exército contra os pais e maridos, apesar de elas próprias estarem numa posição muito mais frágil, sem direitos que se comparassem aqueles que, mesmo assim, ainda iam assistindo aos seus homens. Do outro lado da barricada encontramos as mulheres burguesas, levantando o bastião da Igreja, da moral, dos bons costumes e da família (soa familiar?).
Ildefonso Falcones é advogado e escritor. O seu primeiro romance, “A Catedral do Mar”, tem por cenário a Barcelona Medieval, e foi publicado em mais de 40 países, tendo chegado ao pequeno ecrã em 2018 pela mão da Netflix. Com “Os Herdeiros da Terra”, Ildefonso Falcones voltou ao cenário do seu primeiro romance, regresso muito aplaudido que consagrou o autor ao estatuto de um dos autores espanhóis mais difundidos de sempre, conquistando mais de 10 milhões de leitores em todo o mundo.
Com “O Pintor de Almas” traz-nos uma poderosa história de amor, paixão pela arte, revoltas sociais e vingança na Barcelona modernista, fadada a ser mais um sucesso estrondoso. Aproveite para conhecê-la e não se esqueça: a leitura ainda não foi proibida. Ajude as nossas editoras e livreiros, invista na cultura e viaje por outros tempos e mundos sem sair do seu sofá.
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