Dar novos mundos ao mundo. Esta expressão popular, usada para ilustrar o tempo mais venturoso em que os portugueses foram exploradores e professores do mundo, pode ser extrapolada para o universo literário recente e para a saga Crónicas do Gelo e do Fogo que, depois da recente adaptação ao pequeno ecrã pela HBO – com a designação A Guerra dos Tronos -, vê agora multiplicados os livros dedicados ao ensaio ou à recriação da história – e pré-história – de Westeros.
Se está prestes a chegar às livrarias portugueses o monumental “O Mundo de A Guerra dos Tronos” – edição pela Saída de Emergência -, uma enciclopédia de formato A2 onde, pela primeira vez, a História dos Sete Reinos surge ilustrada e mapeada – com descrições vívidas das batalhas mais épicas, as razões das rivalidades destrutivas e as sementes das rebeliões que conduziram aos eventos descritos no primeiro volume da saga -, os apaixonados pela obra de George R. R. Martin têm já um motivo para adicionar mais um volume à sua biblioteca: “Filosofia de Gelo e Fogo” (Bertrand Editora, 2015)
O livro foi escrito a seis mãos por três autores que partilham a mesma paixão por George Martin, «e de tantos outros que permitem que homens e mulheres compreendam os seus anseios, os seus medos e esperanças, as suas vidas e os seus sonhos» – da introdução: Bernat Roca, professor de Filosofia e História, criador de um blogue sobre as relações entre a série de livros “As Crónicas do Gelo e do Fogo” e a História e a Filosofia; Francesc Vilaprinyo, licenciado em História e Doutorado em História e Cinema; David Canto, jornalista, guionista e crítico de cinema e televisão.
Trata-se de um ensaio que pretende relacionar a obra de Martin com a tradição cultural, literária e filosófica ocidental, «que vai da Epopeia de Gilgamesh e da Ilíada à actualidade, passando pelo romance arturiano e pela história medieval europeia», para além de querer lançar um outro olhar sobre as Crónicas de Martin, seja para os que têm lido os livros ou visto a série.
Nas palavras dos autores – comprovadas por uma leitura estimulante e cheia de referências visuais e literárias -, o livro «leva-nos de Westeros à Roma Antiga, das muralhas de Qarth à distante Pérsia de Alexandre, o Grande, da corte corrupta e decadente de Roberth Baratheon ao magnífico Camelot do rei Arture da rainha Guinevere, a sua mulher infiel.»
O livro encontra-se dividido em três partes: a primeira é dedicada ao Homem, cujos representantes em A Guerra dos Tronos são maioritariamente heróis, psicopatas ou filósofos; quanto à Mulher – a segunda parte é-lhes dedicada -, encontramos sobretudo princesas, bruxas e guerreiras; a terceira parte é feita de revelações, que vão dos Greyjoy aos executores de Westeros.
Para os seguidores de longa data, que no apêndice final do livros encontram pouco sumo para identificar as muitas casas que habitam Westeros quando voltam a pegar num novo livro, este “Filosofia de Gelo e Fogo” pode tornar-se numa espécie de livro de cabeceira, oferecendo um retrato profundo e incisivo das principais personagens: Robert Baratheon, mulherengo, alcoólico e cornudo, bom guerreiro, mau marido e péssimo governante; Eddard Stark, a personagem honrada por excelência, algures entre Aristóteles e Kant; Tywin Lannister, um excepcional jogador de xadrez humano, «rude, insociável e desagradável» – uma espécie de Sun Tzu; Tyrion Lannister, o anti-herói, «o aventureiro entre o hedonismo de Epicuro, a reivindicação de Dionísio e um punhado de conflitos freudianos»; Jaime Lannister, carregador de uma imensa cruz, um super-homem acima da moral e da ética, que cairá como um dominó – ou, em alternativa, recuperará a humanidade; Stannis Baratheon, que faz com que o correcto ou o justo se transformem em algo de muito sinistro; Sor Davos, a consciência ética de Stannis – e também o seu oposto; Drogo, o bom selvagem, o herói que, como Sansão, tem na mulher a sua maior fraqueza; Petyr Baelish, o Maquiavel de Westeros, «destemido e inteligente, esperto como uma raposa», que vê no caos um trampolim para o poder; Joffrey Baratheon, um pequeno Calígula «de aspecto infantil e carácter repugnante e cruel»; Jon Snow, um estóico a fazer lembrar Marco Aurélio para quem deverão estar reservados grandes propósitos.
Quanto a personagens femininas, Daenerys Targaruen é sem dúvida a mais importante, bonita, astuta e enérgica, que começa como uma criança e termina como mulher; Cersei Lannister, uma Guinevere incestuosa, que pretende o poder a qualquer custo e usa a beleza como arma; Melisandre, que vive e semeia uma guerra de opostos; Ygritte, a verdadeira personificação da mulher livre.
Nas revelações vemos a sombra de Lovecraft pousar nos Greyjoy, Shakespeare aterrar em Porto Real, o velho de barba como a figura do mentor na fantasia ou assistimos à recriação da história de A Bela e o Monstro (Sandor e Sansa, Tyrion e Shae). Muito antes, já Martin havia confessado ter começado tudo isto com tartarugas. Nestas páginas, o Inverno – felizmente – já chegou.
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