Os livros adquirem valor e relevância por si só, pelo contexto em que são escritos, pela mensagem que incorporam e, pelo menos ainda, pelo impacto que produzem. “Asas de Saturno” (Exclamação, 2020), de Maria João Cantinho revela-se um excelente exemplo de cada um destes aspectos. Por partes. Maria João Cantinho é professora e investigadora de filosofia, publicando em diversos períodos literários e académicos e integrando diversas antologias de poesia e livros colectivos, em Portugal e noutras paragens. Escreve com aquela capacidade rara de transmitir sensibilidade e profundidade, respeitadora da sintaxe e, ainda assim, liberta de grilhões ou algemas de forma.
Com todos os riscos de catalogação, atrevemo-nos a considerar “Asas de Saturno” como um romance filosófico que suscita reflexão em torno do sentido da vida, do poder redentor da arte, da dicotomia e profunda interconexão entre o bem e o mal, do apelo da morte, do valor do essencial e do acessório, das escolhas individuais e da ligação ao colectivo. Na essência, da ténue fronteira entre a loucura e a normalidade.
Entremos então no enredo. Gabriel e Clara geraram um ser especial, Florimundo, uma criança dotada de uma sensibilidade fora do comum, captando da realidade detalhes únicos – mais tarde bem presentes na sua personalidade e na revelação como compositor e músico.
Sob o pretexto de os preservar da contaminação do mundo, Gabriel sacrificou a liberdade da mulher e do filho, tornando-os escravos da sua própria solidão e obsessão. Vislumbrando no filho um prolongamento da sua obra, quis protegê-lo da contaminação do mundo, privando-o de relações sociais, educando-o num círculo fechado e sem interferências. A obra de Gabriel, um romance carregado de símbolos, revelava-se de difícil compreensão, até para o filho a quem deixava o legado de compreender o mundo através dos livros. Florimundo, por seu turno, desenvolvera uma existência suavizada pela força das imagens e pela luz da linguagem, que descobria na literatura. A arte e a filosofia ajudavam-no a lidar com a natureza humana, mas levavam-no para um mundo de ilusões, dificultando a inevitável confrontação com a crueza das emoções e dos sentimentos, criando um espelho entre si o mundo.
“Cada homem é um pedaço desse imenso caleidoscópio que é a realidade estilhaçada.”
Clara e Margarida, respectivamente mãe e namorada de Florimundo, desempenham em contextos distintos papéis determinantes. O desenlace difere pela distinta ponderação que realizam relativamente a apelos semelhantes, numa dissonância habilidosamente introduzida pela autora, com ganhos em termos de reflexão em torno do sentido da vida e do valor da realização individual.
Capaz de diversificar o foco, Maria João Cantinho consegue dar protagonismo a diversas personagens, diversificando perspetivas e enriquecendo a narrativa e a reflexão sobre o amor e o sentido da vida, em família, entre amigos e entre amantes.
“Asas de Saturno” revela-se um livro tão harmonioso quanto a sua história é intensa e envolvente. As palavras causam impacto, ao ponto de se tornarem visíveis, quase audíveis, os sons e os silêncios descritos, revelando a autora uma capacidade extraordinária para descrever o mundo interior e a turbulência emocional de gente à beira do abismo e num confronto interior.
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