“Andamos a morrer há milhares de anos e ainda não sabemos como se faz.”
Um homem desesperado por amar. Uma criança duas vezes roubada – primeiro pela mãe, que foi com o engenheiro; depois pela derrapagem de um carro. Dois homens perdidos no passado. Uma mulher que aparece como salvação ou alucinação. Três homens com medo de esquecer e, ao fazê-lo, de perderem a memória e o sentido. No cômputo, e progressivamente, uma sucessão de personagens, figurações, expressões, emoções, efabulações e deambulações, num argumento que é agudo e escorregadio. Um conjunto de personalidades enredadas em memórias e em vidas desconexas, unidas pela imprevisibilidade de um momento.
“O amor é um bom negócio, desde que estejamos fora dele“. É parecido com andar de bicicleta – “quase toda a gente consegue, mas ninguém sabe explicar como se faz. Nunca se esquece. Pode dar a sensação de liberdade, mas também ser assustador, depende da paisagem. É algo que se faz sozinho. Podemos ir com alguém, mas vamos a pedalar sozinhos. Cada um na sua viagem, mas com o mesmo destino“.
“As Aves não têm Céu” (Porto Editora, 2020), de Ricardo Fonseca Mota, segundo romance do prémio revelação Agustina Bessa-Luís 2015, é um livro exigente, tanto em termos de atenção como da capacidade de abstracção. Há intensidade na expressão de dor e de desespero da personagem principal; há o desenvolvimento de acções colaterais não evidentes; há uma intencionalidade subtil que, por vezes, deixa o leitor perdido. Afinal, onde nos encontramos e quem acompanhamos? Algo que, curiosamente, nos alia a Leto, o protagonista, no desespero que o próprio vive, oscilando entre viver e morrer. Um homem em grande sofrimento pela perda da filha, procurando resgatá-la através da memória, mantendo-se incansavelmente acordado e vigilante como se, a qualquer momento, pudesse responder ao apelo “Pai! Pai!”. Um homem que não expiara ainda o suficiente para descansar. Depois do que sucedera, estar vivo era vergonhoso, mas necessário.
“Oxalá a filha fosse um dia tornar-se estúpida como a mãe” – era sinal de que estava viva.
Ricardo Mota apresenta uma narrativa impactante, com frases fortes capazes de produzir efeitos de movimento e sonoplastia, portadora de pensamentos intensos e ruminantes, não poupando no arrojo do formato, o que se agradece. A algum desconserto inicial pelas frases curtas, a pontuação e articulação de espaços pouco convencional, segue-se o ganho da sensação de movimento e de cumplicidade pelo turbilhão que é a mente de cada um dos intervenientes que acompanham Leto, três homens unidos pela inverosimilhança que os junta. Um livro que revela a ténue fronteira que separa a normalidade, o desvio e a loucura.
“Sem passado, de onde viria o nosso encantamento pela eternidade? Que salvação tem uma alma que persegue a vontade cega de esquecer? Que deseja esquecer tudo e começar de novo. Pode alguém esquecer tudo e amar simultaneamente?“
Sem Comentários