Em 20000 Days on Earth, quando questionado sobre qual era o seu maior medo, Nick Cave não gastoumuito tempo a decidir, apontando a perda da memória como aquilo que lhe causava pesadelos. Dez anos depois de “Nunca Me Deixes” – lançado pela Gradiva em 2005” -, também o japonês Kazuo Ishiguro aborda a questão da memória –e sobretudo a falta dela -, regressando à ficção como livro “O Gigante Enterrado” (Gradiva, 2015).
Tudo se passa há muitos anos, numa Bretanha desolada, sinistra e não muito para lá da Idade do Ferro, atravessada por grandes extensões de solo árido. Axl e Beatrice são um casal de idosos que vive numa gruta com 60 outros aldeões, numa comunidade que não tem por hábito falar do passado. Um dia, ambos decidem que é tempo de procurar o filho que não vêem há muito, e do qual não recordam a voz ou, sequer, o rosto – ou qualquer lembrança deste ter partido. Axl já nem sabe se terá realmente tido um filho, ou se tal imagem não passará de uma artimanha da memória para lhe consumir a partderradeira da existência.
Para lá dos perigos que projectam para tamanha viagem, entre os quais estará evitar «o caminho que passa por cima do sítio onde o Gigante está sepultado», o casal perceberá que a região está amaldiçoada pela névoa do esquecimento. Porém, enquanto para os outros o caminho parece conduzir inevitavelmente ao apagar das recordações, para Axl e Beatrice a viagem será a do regresso à lembrança e, com isso, a todas as suas feridas, numa relação que estará longe do amor perfeito.
Como em muita da literatura japonesa, navegamos aqui nas águas onduladas do mito, da fábula, da honra e da magia, encontrando uma galeria de personagens inesquecíveis: Wistan, um guerreiro saxão cheio de cicatrizes, que atravessou as montanhas vindo do Oeste com uma missão secreta; Edwin, um jovem silencioso com um olhar inquieto de guerreiro; Gawain, sobrinho do grande Rei Artur, a quem foi confiada uma difícil missão; e, claro, Querig, um velho dragão que tem conseguido evitar a morte.
Mais do que um romance, “O Gigante Enterrado” é servido ao leitor como um enigma, criado algures entre o empolgamento e a comoção, entre a tragédia Shakespeariana e a demanda à moda de Tolkien, e que acaba por cumprir com distinção os desígnios do escritor japonês: permanecer na memória do leitor após este ter percorrido um caminho similar ao do Rei Artur ou ao de Frodo. É que, por muito que a memória colectiva possa parecer uma clara benção, há sempre um ser singular que exige ser descoberto. Uma verdadeira epifania literária.
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