Se quisermos pegar no sempre muito elaborado palavreado futebolístico e aplicá-lo, com tijolos, argamassa e espírito trolha ao sempre surpreendente mundo da arquitectura, poderíamos dizer que o mestre-de-obras Álvaro Siza Vieira abriu o livro e escancarou portas e janelas da sua casa-mundo, transformando a conferência de abertura da edição deste ano das Correntes d’Escritas numa masterclass do tamanho de um arranha-céus, furando os céus da Póvoa de Varzim.
Arquitecto com obra espalhada pelos muitos cantos do mundo – ou monumentos como a Faculdade de Arquitectura ou o Museu de Serralves, ambos na cidade do Porto -, Álvaro Siza falou da cidade como a matéria essencial da arquitectura, realçando o valor que deve ser dado e empregue no território comum.
Álvaro Siza já pouco trabalha em Portugal. A crise actual da arquitectura europeia levou-o à China, Coreia, Tailândia ou ao Japão, onde o trabalho se realiza e se paga, quase sempre por privados e sem concurso, pelo menos até à chegada do Corona, que suspendeu alguns dos trabalhos que estavam em andamento. A título de exemplo temos o China Design Museum, o segundo museu dedicado ao design no país, inaugurado em Abril de 2018 aquando das celebrações do 90.º aniversário da academia, no campus universitário de Xiangshan, em Hangzhou, a capital da província de Zhejiang.
O humor foi uma constante, como quando falou dos prémios que foi recolhendo ao longo de décadas como sendo parte de um karma: “Os prémios deram-me muito posto mas, de certa forma, foram a pior coisa que me aconteceu. Criaram anticorpos. Mas os prémios não passam de coisas circunstanciais: quem é o júri, qual a tendência que predomina. Não é apenas a qualidade do trabalho que está em causa”. No seu caso, como disse respondendo ao moderador José Carlos Vasconcelos, “foram muitas circunstâncias boas”.
O desenho, parte menos conhecida mas essencial no trabalho de Siza, foi também abordado. “Continuo a desenhar, cada vez pior. Para ter uma explicação agradável culpo a operação ao braço”.
Em grande destaque esteve o 611 West 56th Street, um elegante arranha-céus que está a ser construído na zona de West Side, em Manhattan, Nova Iorque, projecto encomendado a Siza, com 137 metros de altura e 38 andares: “Tenho tido muita sorte. Achei um milagre absoluto terem-me entregue uma torre em Manhattan. Foi uma imobiliária. Quando vi a planta do espaço achei que não iria caber. São 38 pisos mas a proporção é muito boa. É mais fácil fazer um projecto em Nova Iorque do que no Porto. As regras urbanísticas são facultadas com todo o rigor. Se há alguma dúvida liga-se e esclarece-se. Aqui é mais difícil. A carga burocrática é impensável em Portugal. Comecei a trabalhar em 53, 54, nessa altura não havia burocracia nenhuma – nem informática ou impostos. Os regulamentos eram mínimos. Quando começaram a trabalhar nisso em Portugal fizeram-no com um cocktail violento, retirado de países como a Inglaterra, a Alemanha ou a França”. Um cocktail que serviu para o arquitecto brincar, a título de exemplo, com os extintores e as muitas sinaléticas extra que os circundam.
Para Siza, a visão da Grande Maçã é a de “objectos a nascerem como plantas num campo. É assim Nova Iorque. A convicção do uso e da força de crescimento é o que conta e o que fica no contexto, não necessariamente a relação com o que está à volta”. Disse ter estado sujeito a regras precisas de altura e profundidade, contando ainda assim com uma relativa liberdade no campo de composição. “É bem aceite um recuo da fachada. Aceitam- se diferenças no perfil do edifício. No topo, a área enorme reservada à maquinaria permite uma liberdade na forma da cabeça do edifício. É tudo muito condicionado mas com abertura à diferença”. Uma diferença que, para Siza, é também um reflexo da consciência americana da sua falta de história, que faz com que esses topos dos edifícios dialoguem entre si em línguas e tempos muito distintos, seja recorrendo à inspiração gótica, renascentista ou barroca.
Sobre o facto de ter abraçado projectos em culturas e geografias muito diferentes da portuguesa, referiu a “ideia mítica de um país ou de uma cidade que transportamos connosco”, que permite que seja a própria novidade e a curiosidade a despertarem a procura do conhecimento e da beleza. O mais importante, seja em que geografia for, será sempre o entusiasmo e o prazer: “Arquitectura sem prazer na sua execução é coisa mais insuportável que pode haver. Tem de se inventar o entusiasmo”. Com 86 anos, brincou sobre o que faz o melhor arquitecto: “A melhor qualidade de um arquitecto é ser novo”.
Nuno Krus Abecasis, presidente da Câmara de Lisboa entre os anos de 1979 e 1988, foi também tema de conversa, tendo recebido palavras de muito apreço por Siza, que dele recebeu a encomenda da reabilitação dos edifícios do Chiado: “Ao fim de dois encontros tratava-me por tu, e depois disso por menino. Até chegou a saudar a minha entrada numa reunião onde estava presente um vereador com um “Oh minha pomba!”. A ele se seguiu Jorge Sampaio, e com isso um processo de democratização pouco favorável ao processo arquitectónico: “Com o Sampaio e a democratização o ritmo de trabalho baixou muito. Era preciso ouvir muita gente antes de se poder fazer alguma coisa”.
Sobre os muitos projectos que vai deixando erguidos, referiu uma relação feita de distanciamento, de recordações boas e más, mas também com polémica à mistura, parte essencial do ofício que lhe assiste. Polémica que tanto atravessou o IBA, plano nascido no final dos anos 1970 cuja intenção era reparar uma parte da cidade de Berlim que tinha sido muito danificada durante a guerra, criando uma arquitectura humana e inserindo elementos artísticos na paisagem da cidade – e cujas opiniões se dividiam entre arrasar para construir de novo ou, em alternativa, pegar nas ruínas e recuperar a dimensão histórica, com a participação dos moradores, esta última defendida por Siza; no combate entre a nova arquitectura e o tradicionalismo, no qual Siza acabou sendo considerado um tradicionalista por ter usado o clássico tijolo ao invés da superfície branca; em Salzurgo, onde na ampliação de um casino e à boleia da luta política se viu caricaturado a dar um empurrãozinho ao presidente de câmara; ou em Alhambra, onde um grupo defendeu que o seu projecto não era mais do que um centro comercial, tendo assim caído por terra -“Qualquer dia alguém fará esse projecto, mas não serei eu“.
Nas perguntas do público pediu-se a Siza para que nomeasse alguns dos seus heróis poetas, tentando saber-se se a ideia de que era um leitor de Konstantínos Kaváfis era ou não um mito. Uma vez mais, Siza recorreu ao humor para falar da arte poética: “A poesia na literatura interessa-me por uma razão muito prosaica. Como tenho falta de vista e me canso rapidamente, os poemas são pequenos e tenho tempo para os saborear. Há uma razão física mas não só. Na poesia o que entusiasma são os japoneses, os haikus, que em três linhas permitem que vejamos claramente o que o poeta descreve, revelando uma capacidade de síntese e de rigor: cada palavra é uma preciosidade“. Tal como cada construção sua.
Mais cedo neste dia de abertura, “Sua Excelência, de Corpo Presente”, de Pepetela (D. Quixote), foi anunciado como a obra vencedora do Prémio Literário Casino da Póvoa 2020, no valor de 20 mil euros. O Júri, constituído por Ana Daniela Soares, Carlos Quiroga, Isabel Pires de Lima, Paula Mendes Coelho e Valter Hugo Mãe, destacou “a originalidade do estratagema narrativo eficaz para denunciar com ironia uma história do nepotismo e abuso de poder próprio de sistemas totalitários”.
Pepetela (Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos) nasceu em Benguela, Angola, em 1941. Frequentou o Ensino Superior em Lisboa mas acabou por licenciar-se em Sociologia, em Argel, durante o exílio. Iniciou a sua atividade literária e política na Casa dos Estudantes do Império. Como membro do MPLA, participou ativamente na governação de Angola, após o 25 de Abril. A partir de 1984, foi professor na Universidade Agostinho Neto, em Luanda, e tem sido dirigente de associações culturais, com destaque para a União de Escritores Angolanos e a Associação Cultural Recreativa Chá de Caxinde. A atribuição do Prémio Camões (1997) confirmou o seu lugar de destaque na literatura lusófona.
Fotos: Correntes d`Escritas/Câmara Municipal da Póvoa de Varzim
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