“A Morte Não é Prioritária” (Contraponto, 2019), biografia de Manoel de Oliveira, da autoria de Paulo José Miranda, é o segundo volume de um projecto editorial de biografias sobre “grandes figuras da cultura portuguesa”, escritas por autores maioritariamente ficcionistas. A colecção foi inaugurada o ano passado com uma biografia de Isabel Rio Novo sobre Agustina Bessa-Luís, prosseguindo agora com “A Morte Não É Prioritária”, um livro sobre o percurso de vida e de trabalho – intimamente interligados – de Manoel de Oliveira, que morreu em 2015 aos 106 anos de idade.
O autor dedicou dois anos de trabalho a esta obra, cruzando todos os filmes do cineasta, fontes documentais e testemunhos de quem privou e trabalhou com Manoel de Oliveira. Acrescentou também informações recolhidas de um dos filhos do realizador, Manuel Casimiro, o único que aceitou colaborar de forma mais aprofundada. Paulo José Miranda explicou, numa entrevista recente, que uma das razões que o levou a aceitar escrever esta biografia foi o apreço enorme que tem pela obra de Manoel de Oliveira. Mesmo assim o texto não é laudatório, e o autor, que quis poder reflectir sobre as histórias que conta, faz mais do que enumerar factos biográficos, escrevendo demoradamente sobre a produção de muitos dos filmes de Manoel de Oliveira para desvendar ao leitor a extrema importância do pensamento cinematográfico do cineasta.
“Em Manoel de Oliveira há uma obsessão pelo próprio e a consciência de que só aprofundando-se a si mesmo e na cultura onde se está inserido se pode alcançar a metafísica da identidade. Repetir-se a si mesmo até à exaustão, como quem escava a terra em busca de si mesmo. Obrigar-se a ver continuamente as suas gentes, a si mesmo, porque o olhar só capta a realidade na repetição, na lentidão, nos planos fixos. Olhar sempre, olhar até ver.”
A par da notabilidade nacional e mundial como cineasta, Manoel de Oliveira teve uma vida riquíssima, variada e um grande talento em vivê-la na generosidade do tempo que teve para ler e reflectir. Tempo que desfrutou com sabedoria, transpondo a sua importância para a obra cinematográfica. Paulo José Miranda refere que, nesta biografia, entendeu por bem deixar de fora “questões pessoais, de foro íntimo“, mas sem se abster de relatar as tensões com a escritora Agustina Bessa-Luís ou com as actrizes Leonor Silveira e Catherine Deneuve.
A biografia revela ainda o que terá levado ao fim da longa relação de trabalho entre o realizador e o produtor Paulo Branco. Na origem da ruptura – nunca explicada por ambos – terá estado um episódio passado durante um jantar na residência oficial do então primeiro-ministro, Durão Barroso, por ocasião da estreia do filme “O Princípio da Incerteza”. Diz agora o produtor Paulo Branco, citado na biografia: “Acredito que a nossa separação tenha contribuído para uma nova vitalidade do Manoel, ele deve ter sentido vontade de provar que não precisava de mim para nada“.
A obra apresenta uma visão inédita de conjunto, fornecendo informação sobre o que o leitor poderá encontrar sobre o realizador nas cinematecas ou universidades, catálogos ou estudos dedicados. Paulo José Miranda aborda de forma tocante a personalidade do biografado, nas várias fases da sua vida, considerado um dos homens mais sexy de Portugal na década de 1930, (aos 25 anos foi modelo da estátua de 2 metros de altura, o Atleta ou o Despertar da Raça do escultor Henrique de Araújo Moreira, que se encontra hoje na sala dos troféus do Vilanovense Futebol Clube, em Vila Nova de Gaia) e que, na sua vida de jovem, foi atleta, trapezista voador, corredor de automóveis e piloto de aviões – e, mais tarde, gestor da fábrica da família de passamanarias e de vinhas no Douro.
Muito relevante é o facto de quase toda a sua obra cinematográfica ter sido feita depois dos sessenta/setenta anos: “Até aos 60 e poucos anos, realiza duas longas-metragens de ficção; depois disso (1972) e até morrer em 2015, realiza trinta. Não se trata de ter feito mais alguns filmes, fez quase toda a sua obra depois dos 60 anos”. Razões ponderosas estão por detrás desta maturidade tardia: o Estado Novo, que o via como uma persona non grata, e que chega a prendê-lo no Aljube por seis dias, e a falta de dinheiro para poder financiar os seus projetos.
A escrita do livro é encantatória, prenhe de episódios bastante polémicos com versões contraditórias, e o ritmo é o mesmo de uma câmara cinematográfica (porventura do próprio Manoel de Oliveira) que se demora mais – muito mais tempo – no que é essencial. A forma magistral como “disseca” todos os filmes de Manoel de Oliveira – numa perspetiva pessoal, artística e intimista – mostra o profundo labor a que o autor se entregou.
“A Morte Não é Prioritária” é uma excelente biografia, fruto de um trabalho com grande sentido de responsabilidade perante a genialidade da personalidade biografada. Um extraordinário e fidedigno testemunho histórico de um século de uma vida e de um País.
Paulo José Miranda, nascido em 1965, é romancista, poeta e dramaturgo. “A Voz que nos Trai”, o seu primeiro livro de poesias, publicado em 1997, foi vencedor do prémio Teixeira de Pascoaes. Iniciou então o seu “tríptico da criação”, uma série de romances sobre autores portugueses do século XIX.
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