Quase trinta anos após o seu primeiro romance (“Estorvo“), Chico Buarque, Prémio Camões em 2019, lança no Brasil e em Portugal “Essa Gente” (Companhia das Letras, 2019), o lado oculto ou sub-lunar da produção literária através da voz de um narrador escritor – Manuel Duarte, nascido no Rio de Janeiro no ano de 1953, filho de um reputado jurista, na juventude ligado a movimentos de oposição à ditadura militar brasileira, com trabalhos em publicidade e jornalismo, com uma carreira literária posterior e até ao final dos seus dias. Manuel Duarte assume, no livro de Chico Buarque, o papel de narrador e personagem central, escritor sexagenário, notabilizado por um romance histórico que se tornou bestseller, ao qual se seguiram outros onze títulos.
“Essa Gente” fornece o contacto com a vida de um escritor que, para muitos, possui pontos de contacto com a própria trajectória de Chico Buarque, tanto nas semelhanças como em aspectos divergentes. Durante quase um ano, entre Novembro de 2018 e Setembro de 2019, num Brasil contemporâneo com a governação de Balsonaro, a crescente estratificação e radicalização política e social, os movimentos extremistas e oposicionistas, os comportamentos sectaristas e violentos de alguns brasileiros são apresentados de forma sublimar, numa viagem ao Brasil actual na pele de um escritor em crise de inspiração, financeira e emocional. A partir daqui, para sobreviver e lidar com a (des)esperança, serão vividos todo o tipo de interacções, hesitações, desesperos e arrestos, pautados pela falta de imaginação e de produção, a pressão do editor por um novo livro, uma sucessão de relações, sexo e tentativas desesperadas de sobrevivência e de conexão com a realidade.
“Enquanto calçava a luva de látex na mão direita, o doutor me perguntou se eu acreditava em Deus. Numa vida após a morte, não acreditava? A finitude, como é que eu lidava com a finitude, e ao me ver meditativo em posição fetal, aproveitou para enfiar o dedo no meu rabo. A próstata estava com boa textura, esponjosa, um pouco dilatada, mas dentro dos parâmetros para a minha idade.”
Para além do protagonismo de Manuel Duarte, o já apresentado narrador escritor, conhecer-se-á Maria Clara, a sua primeira mulher, tradutora e mãe do seu único filho; Guri, o descendente de ambos, pré-adolescente com quem Duarte tem dificuldade em comunicar e relacionar-se; Petrus, o editor; Rosane, a segunda ex-mulher, arquitecta e designer; um advogado e amigo de infância; e outras tantas personalidades, suficientemente diversificadas para assegurar um retrato completo da vida que gravita do Leblon ao morro do Vidigal.
A narrativa, sob a forma de excertos de um diário ou relato cronológico, de um processo de reflexão pessoal e relato factual, contagia e prende pela arte de Chico Buarque de não onerar os seus livros com descrições ou explanações desnecessárias, hábil em dizer muito com pouco, em transformar fragmentos de vida em verdadeiros contributos culturais. “Essa Gente” confirma o seu carácter multifacetado e o valor impactante da sua mensagem.
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