O cinema de Ingmar Bergman mantém-se próximo da sua respeitada carreira no teatro. Um lado busca necessariamente o outro. Para um monstro sagrado da crítica norte-americana, Jonathan Rosenbaum, é tal dicotomia que impede as potencialidades plenas do cinema de Bergman. No artigo que escreveu em 2007 para o The New York Times, Rosenbaum aponta que é esse o motivo da sucessiva perda de pertinência bergmaniana, afirmando, de igual modo, que a catarse para os traumas de uma vida turbulenta deixa um vazio enorme entre as obras do autor sueco e o público. À parte de uns aspectos técnicos à frente do seu tempo, o legado de Ingmar Bergman estará condenado ao esquecimento.
Como tudo na vida, há aspectos a ter e a não ter em conta no comentário de Rosenbaum. É certo que há muito profetismo discutível, mas o papel do crítico passa por aí, pela discussão que gera. Em “Lanterna Mágica” (Relógio d`Água), é dedicado espaço aos críticos, os que menosprezaram e os que enalteceram a obra do cineasta. Ao longo de pouco mais de trezentas páginas, Bergman não só justifica a validade do seu teatro e cinema, como também aponta as fraquezas da sua vasta obra. Além de uma demanda metafísica, Bergman precisou da escrita, do cinema e da encenação, quer para sobreviver, quer para viver como um burguês.
A comunhão traumática que lhe orquestrou a vida atinge um nível de pureza sem precedentes com a sua autobiografia, que depois de lida parece redefinir todo o cariz intimista presente na sua filmografia. Separadas as águas que possam ser separadas entre formas de expressão, “Lanterna Mágica” é uma afirmação incontestável de carreira. As lembranças que Bergman recolhe são sobretudo as mais infelizes. Destacam-se cenas da vida conjugal (das várias que teve), ataques da comunicação social (por exemplo, o escândalo da alegada fuga ao fisco da Personafilm) ou a simpatia nazi da família do cineasta por alturas do triunfo do nacional-socialismo. Recorre à infância, geradora de todas as dúvidas existenciais que povoariam o seu imaginário, bem como as descobertas ligadas à sexualidade e companheirismo. Nestas recolhas em particular, a honestidade dá azo a uma completa ausência de vergonha, sem entraves moralistas. São revelações com uma mestria reservada aos escritores mais transparentes; constá-las dá alento, graças à escrita desprovida de ornamentos.
Um manual precioso para aspirantes a artista, “Lanterna Mágica”volta e meia insiste em fazer-nos pensar se a obra de Bergman seria diferente caso fosse homem de um único ofício, fosse qual fosse entre os que enveredou. Remete-nos ao diálogo fechado de Rosenbaum, pese o cinema ser fruto de um esforço pluridisciplinar. Sendo que a sétima arte não é um teatro 2.0, é de igual modo desastroso achar-se que qualquer diálogo próximo com demais linguagens artísticas retira-lhe nobreza e a “capacidade de dizer algo novo”. Posto isto, a autobiografia de Bergman tem uma voz que é preciosamente sua, e isso ninguém lhe tira, mesmo que o cinema não fique.
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