“Em Buenos Aires as pessoas estão sempre a ler! É incrível. Nos parques, nos cafés, nos autocarros. Até a gente mais simples lê. Cruzei-me com um homem do lixo que trazia um carrinho e, num canto, tinha uma espécie de biblioteca portátil.
São para vender?, perguntei.
São para ler, senhor, disse ele.”
Vicenzo Fontana, vítima de poliomielite, facto que o governo espanhol minimizou, sobreviveu ao tratamento, e a rebeldia evidenciou-se na sua juventude, na escrita de letras de música rock. A sua existência tenta suplantar a enfermidade, mas os desafios colocados pela ambição dos especuladores imobiliários abalam o seu negócio, marcando o fim do lugar mágico: a livraria Terranova.
Vincenzo é assim obrigado a colocar, na montra, um letreiro onde se lê “Liquidação final de stock por encerramento iminente”. Sinais dos tempos, dirão os mais resignados. Os mais crentes, esses, continuarão a lutar para promover o livro. E quanto aos leitores? Merecerão ler este letreiro? “Não, as pessoas não merecem aquele letreiro. Com a crise e o reclamo dos grandes centros comerciais”, os verdeiros amantes de livros sentir-se-ão órfãos. As livrarias escasseiam. Como será possível encerrar a livraria com décadas de existência? Primeiro dirigida pelos seus pais – Amaro e Comba –, depois pelo tio Eliseo, e agora por si. Como apagar da memória geografias humanas e politicas, exílios imaginários? Como esquecer os encontros, reais ou imaginários, com Borges, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, García Márquez ou Kapuscinski, entre outros? Como desprezar os livros proibidos? Como descorar os relatos do tio Eliseo sobre a visita a Maria Zambrano, em Itália?
“O Último Dia da Terranova” (Faktoria/Kalandraka, 2018) fala-nos de livros – de muitos livros -, de livros proibidos, de livrarias e livreiros, de contrabandistas da cultura, denunciando o fim de uma época em que a transmissão cultural era determinada pela fé dos leitores, pela glória dos escritores e dos seus livros. Com o fim da livraria Terranova, como iremos encontrar “Os Últimos Dias da Humanidade”, de Karl Kraus? Ou “A Criação do Mundo”, de Miguel Torga? Mas será necessário encontrá-los? Poderemos sobreviver privados dos dramas da humanidade ou da belíssima escrita de Torga, onde se joga à descoberta do conhecimento do mundo e do eu?
Vincenzo “não queria ser um escravo dos livros. Queria-os para ler, mas o meu sonho não era propriamente ser livreiro. Achava curioso que aqueles homens e mulheres aproveitassem as suas viagens de ida e volta da emigração para trazerem livros no fundo falso da mala. Admirava o capitão Canzani, a atravessar o Atlântico com a sua carga poética, mas interessavam-me pelo que tinham de contrabandistas, de clandestinos, de fora-da-lei. Admirava-os a eles, não aos livros. O tempo todo a reclamar atenção! A Terranova podia existir sem livros. Comba, Amara, Eliseo não viviam dos livros, viviam para os livros”. Os livros valorizam a existência, originam alegrias e tristezas, ampliam conhecimento, criam sentidos.
Em “O Último Dia da Terranova”, Manuel Rivas presenteia-nos com um manifesto em prol das livrarias, do livro e da leitura. O domínio da palavra, ora poética ora metafórica, sensível e elegante, transporta-nos para uma intertextualidade que nos obriga ler o mundo. Ao virar de cada página somos convidados a percorrer múltiplas estantes em busca de um, ou mais livros, para ler ou reler, para saborear a magia das palavras, a curiosidade e a reflexão sobre a literatura, sobre a vida. É com agrado que nos cruzamos com ilustres escritores portugueses, assim como das suas obras, e também com factos históricos como o 25 de Abril de 1974.
A coleção Confluências é um abraço entre línguas, uma geminação, uma correspondência generosa uma fantasia editorial que pretende mostrar – em português e em espanhol – obras em destaque da literatura escrita nas diversas línguas faladas na Península Ibérica e na América Latina. “O último dia da Terranova” é o terceiro título da coleção.
Manuel Rivas nasceu na Corunha, em Espanha, em 1957. Escritor e jornalista, é um dos autores mais reconhecidos no panorama actual da literatura galega e espanhola. A sua obra ficcional é vasta: “Un millón de vacas” (1989), que recebeu o Prémio da Crítica Espanhola no mesmo ano; “Os comedores de patacas” (1992); “Que me queres, amor?” (1996), Prémio Torrente Ballester e Prémio Nacional de Narrativa; “O lápis do carpinteiro” (1998) e “Os libros arden mal” (2006), ambos galardoados com o Prémio da Crítica espanhola, são alguns dos seus romances mais importantes. Algumas das suas obras, nomeadamente “A língua das borboletas” (1998) e “O lápis do carpinteiro” (1998), foram adaptadas ao cinema.
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