O turismo galopante que tomou conta de Lisboa – para uns uma benesse, para outros uma praga bíblica – serve de ponto de partida para “Alojamento Letal” (Planeta, 2019), romance policial do escritor e jornalista brasileiro Álvaro Filho. O autor viu de perto a agressiva especulação imobiliária no centro histórico da capital: viveu mais de um ano em Alfama, e inspirou-se nessa experiência para criar este livro.
No centro da narrativa está o escritor Nuno Cobra, especialista em policiais nórdicos carregados de neve, gelo e sangue, que assina com o pseudónimo de Svart Dødsord. Cobra recebe a inesperada visita de um velho chinês “com nome de vaso”, o enigmático Sr. Ming. Acontece que há um assassino sanguinário a extirpar olhos no ancestral bairro de Alfama, e o ancião precisa da ajuda do escritor para provar a sua inocência – as vítimas eram todas inquilinos do vetusto empresário, que surge como o mais directo beneficiário dos crimes atrozes.
Deste encontro nasce o enredo, no qual travamos conhecimento com uma série de personagens com nomes que parecem presságios: o duro Inspector José Touro, a fogosa bomba brasileira Tullianne Coelho, o polícia estrábico mas atento Gervásio Potro e o político de moral duvidosa Onofre Leitão, entre muitos outros. Em paralelo seguimos o desenrolar do novo livro que Cobra se encontra a escrever, uma dimensão alternativa onde vive o gélido Inspector Müs, sempre no encalço do implacável Lâmina pelas glaciais estepes escandinavas.
“Alojamento Letal” configura-se como um divertimento intelectual, feito com base em arquétipos do policial noir, que o autor subverte com uma ironia de corte fino e ácido. Abundam as comparações à la Raymond Chandler, com clientes de perfumaria que farejam “como perdigueiros” os pequenos frascos coloridos, limusines imensas e lentas “como baleias”, e homens robustos “como se lhes tivessem misturado betão no leite”, por exemplo. Acrescente-se um naipe de personagens derivado da astrologia chinesa, um assassino (literalmente) lunático, uma sedutora ninja sodomita e um francês que cheira mal, e temos uma obra algo inclassificável, a meio caminho entre o policial cómico e a fábula onírica.
Sem grandes preocupações com a plausibilidade da história, “Alojamento Letal” é, no entanto, um livro que se lê com inegável prazer até às delirantes últimas páginas.
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