Quando se pega no livro “O Terrorista Elegante e Outras Histórias” (Quetzal, 2019), de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, há a premonição de alguma balburdia, com risco de falta de identidade e trejeitos de brincadeira, ou não fosse este um livro escrito a quatro mãos, bicéfalo, soando a prazer e a deleite. Desenganem-se, pois, as aves de mau agouro, águias, abutres, milhafres, corujas, corvos ou gralhas. Estamos perante um livro de porte grandioso, que representa um voo alto e expressivo de sabedoria levado a cabo por dois grandes escritores lusófonos, figuras que revelam, com a sua escrita a história, a cultura e o destino dos outros e de si próprios.
Em posfácio, fica a apresentação: “A escrita de um e a escrita de outro. E uma amizade duradoura, cúmplice, mais do que apenas uma relação literária. Mia Couto (Beira, Moçambique, 1955) e José Eduardo Agualusa (Huambo, Angola, 1960), moçambicano e angolano, respectivamente – e dois dos expoentes da literatura escrita em língua portuguesa -, que finalmente se reúnem num livro escrito a quatro mãos, misturando estilos, referências, frases e também o desejo de escrever numa língua plural que cruza continentes e se espalha como uma nuvem de alegria”.
Nas palavras dos próprios autores, as três novelas do livro têm por base peças de teatro escritas em conjunto, ainda que em tempos e por vias diferentes, quase sempre rindo e brincando com o acto de criar e de partilhar, “apostando na negação da ideia de que a criação literária é sempre um ato profundamente solitário”.
Em “O Terrorista Elegante”, Charles Poitier Bentinho é prisioneiro do comissário Laranjeira e pretendido pela CIA. Deitado no chão da cela, olhando para a luz e para os rabiscos na parede, pensa alto: “– Sabes o que é o amor, meu pássaro? Muitos julgam que sabem, mas nem o perfume lhe distinguem. Eu mesmo, que conheci mais de mil mulheres, quantas amei na verdade? Eu, mestre de espíritos, domador de dragões, tratei um sem-fim de gente. As pessoas queixavam-se de dores diversas, incompetências sexuais, agonias e desesperos, rugas e verrugas, invejas, rancores e maus odores, mas, vendo bem, quase todas sofriam era de falta de amor”. Mais tarde, depois de ter colaborado com a investigação, sabendo-se extraditado e usado como pretexto para muita coisa, “raspa com as unhas o desenho do pássaro e recolhe o pó para uma caixinha. Faz isso lenta e minuciosamente enquanto canta. Terminado o trabalho, lança o pó para a luz, através das grades da cela. – Vai, meu amigo pássaro. Vai e voa, livre, de volta ao céu. Enquanto houver pássaros no céu, ninguém me poderá prender”.
Páginas à frente encontramos Baltazar Fortuna, de regresso a Xigovia para apagar amores que lhe pesam, pretendendo matar as três mulheres que amou. Nesta segunda história, “Chovem Amores na Rua do Matador” para Baltazar, de quarenta e nove anos, a quem calhava bem ter trinta e três, trinta dele e três das mulheres com quem viveu: “a mulher é perigosa, desde Eva que circula em contramão.” Por esta razão procura ajustar contas com Mariana Chubichuba, a primeira das três e por quem se sentiu traído e trocado, segue depois até Judite Malimali, bonita mas com mania da esperteza, e termina em Ermelinda Feitinha, a todas voltando a sucumbir de dores e de amores.
Segue-se a terceira história, “A Caixa Preta”, na qual a velha Luzinha guarda segredos – e onde a neta Vitória procura descobrir e compreender um pouco mais da sua história de abandono pela mãe e do desaparecimento do pai.
Em cada um destes textos é evidente a vontade de falar sério ainda que de modo folgado, de tocar temas como o abuso, a violência e o abandono, de forma simultaneamente subtil e bruta ou não seja, tantas vezes, o humor a via mais crua e ainda assim melhor aceite de dizer o que é preciso ser dito – neste caso, que a ameaça pode não estar onde desejamos que esteja, que as mulheres podem não morrer quando as querem matar e que a identidade pode sobreviver à omissão.
A Mia Couto e a José Eduardo Agualusa são, no mínimo, devidos agradecimentos pela audácia e o engenho.
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