Descrever o novo romance de Isabel Allende numa só palavra é uma tarefa incrivelmente simples: familiaridade.
Familiaridade porque é já apanágio da autora ter, como palco privilegiado das suas estórias, os locais que foram também palcos privilegiados da sua vida, nomeadamente o Chile onde, a autora nascida no Peru em 1942, viveu grande parte da sua infância e adolescência.
Familiaridade porque “Longa Pétala de Mar” (Porto Editora, 2019) tem o seu quê de biográfico. Tal como a autora, também o personagem principal do seu enredo, Victor Dalmau, viveu um exilio forçado na Venezuela, aquando da queda do regime de Salvador Allende e da implementação da ditadura de Augusto Pinochet. Salvador Allende, o tio da autora que, na história, é ainda companheiro esporádico de xadrez do seu protagonista.
Familiaridade porque as estórias retratadas nesta Longa Pétala de Mar podiam ser as estórias do nosso tio-avô, do nosso vizinho do lado. Todos nós conhecemos uma Carme Dalmau, uma Roser Bruguera, um Victor Dalmau, um Ignácio ou uma Ofélia Del Solar. Estórias, como diria Jorge Fernando na sua “Chuva”, que são estórias da História da gente, e que têm por isso mesmo o condão de nos emocionar, de nos constranger, de nos fazer sorrir.
Iniciada na Catalunha de 1938, em plena guerra civil espanhola – ou no “ensaio geral” para a II Guerra Mundial, como lhe chamaram os historiadores – e no advento da ditadura franquista, é uma história surpreendentemente actual. Desde as convulsões na Catalunha, que se afirmando um estado independente da Espanha logrou ser o último reduto de resistência ao franquismo, às crises de refugiados que levaram a França a fechar as fronteiras, ao preconceito enfrentado pelos exilados políticos, que chegaram ao pacífico Chile apenas um par de dias após a eclosão da IIª Grande Guerra na Europa, o medo do desconhecido e a repressão sentida um pouco por toda a América Latina, oitenta e um anos quase parecem oitenta e um dias.
“Longa Pétala de Mar” é, também, uma ode a Pablo Neruda e ao Chile. O próprio título, que posteriormente a autora usa como metáfora para a vida, é simultaneamente a analogia usada por Neruda para descrever o Chile, um amor comum a ambos. O Winnipeg, navio onde as personagens centrais embarcam rumo ao exílio no Chile, é real e foi Pablo Neruda, que então exercia funções de cônsul para o governo chileno em Espanha, que o fretou com ajuda de instituições humanitárias e do presidente do Chile – o radicalista Pedro Aguirre Cerda -, para embarcar centenas de refugiados da guerra civil espanhola.
Neruda é omnipresente em toda a narrativa. Além de interagir com o protagonista, que até o acolherá em sua casa quando o político e poeta andar ele próprio foragido, todos os capítulos começam com a citação de um verso seu sobre o Chile. A poesia de Neruda será ainda elo de ligação entre Victor Dalmau e a sua “raiz” chilena, que o leitor só irá descobrir no final do livro.
Além de Neruda, outras personagens históricas aparecem aqui retratadas, como o cantor Victor Jara ou o próprio Salvador Allende, a quem a autora homenageia, sendo este porventura o seu romance mais biográfico. Também Isabel Allende viveu na pele a realidade dos exilados políticos, e grande parte dos factos históricos narrados foram vividos aguerridamente pela sua própria família.
A data de lançamento do próprio livro na Europa é também coincidência curiosa, já que retrata a ascensão de Francisco Franco e o seu funeral no Vale dos Caídos, e veio coincidir com a polémica trasladação do ditador.
Um romance histórico e contemporâneo, que tem o condão de ser por vezes um murro no estômago, por vezes doce, por vezes amargo. Que retrata uma história que tanto se poderia ter passado no Chile de Pinochet, no Chile de hoje (veja-se o manifesto da cantora Mon Laferte nos Grammys Latinos), na Espanha de Franco, no Portugal de Salazar. Que tanto nos faz chorar como sorrir. Que, pegando nas palavras de Victor Dalmau, nos convida a reflectir: “A minha vida foi uma série de navegações. Andei por quase todos os lugares da Terra. E em toda a parte fui estrangeiro sem saber que tinha raízes profundas”.
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