“O empregado não sabe que porta da casa eu mereço, pois não vim fazer entrega nem tenho aspeto de visita.”
Francisco Buarque de Hollanda – ou simplesmente Chico Buarque -, Prémio Camões em 2019, compositor, cantor, ficcionista, retratista, artista. Dizer o quê? “Estorvo” (Companhia das Letras, 2019), originalmente publicado no raiar da década de 90, foi o romance primogénito, ao qual se sucederam Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009) e O Irmão Alemão (2014). Concebido entre peças de teatro, novelas e muita musicalidade, este primeiro romance de Chico Buarque transborda, numa narrativa engenhosa, a realidade e o imaginário, a lucidez e a alucinação, o individual e o social, numa dicotomia persistente e resoluta.
“Estorvo” representa uma sucessão de episódios vividos por um homem assombrado pela sua própria realidade. Foge por se julgar perseguido, procura refúgio em relações que já não são o que esperava, uma irmã que o financia e protege e a quem trai, uma herança e uma propriedade que resolve procurar numa altura em que a mesma parece usurpada, uma sucessão de roubos e esquemas que não procura mas também não evita, a relação utilitária que mantém com a mãe e a ex-mulher. Perseguições, aflições e um conjunto infindável de suposições retratam uma parcela do quotidiano deste homem e, através dele, a dura realidade social do Brasil. Um retrato de ambos, homem e país, produzido num equilíbrio improvável entre subtileza e acutilância, com forte exposição e crítica social – um homem suspenso no tempo, num país suspenso no limbo.
Para muitos, os romances de Chico Buarque são verdadeiros diagnósticos do Brasil contemporâneo, da falência de uma utopia brasileira. Retratos do desenvolvimento social do país quase sempre a partir de um ponto de vista popular, de uma narrativa na primeira pessoa que deixa antever os motivos mais recônditos dos desejos e decisões dos personagens. Em “Estorvo”, o protagonista-narrador, ainda que de classe média-alta, apresenta-se decadente, movimentando-se nos meandros cariocas dos condomínios de luxo e da criminalidade, numa neblina de opacidade, culpa e ressentimento, como um pária.
Desequilíbrio psicológico e desajustamento social, ambiguidade e sobrevivência, num passado turvo e um presente pouco credível, do protagonista e do contexto, combinações que se pressentem perversas e que se alimentam da desigualdade. “Fecho os olhos e vejo diamantes. Ouço um gemido rouco que não sei se é meu”.
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