Ler “Preciosa” (Planeta, 2019) é conhecer muito mais do que a infância e adolescência de Nelson Nunes. A sua história é a história de milhares de famílias que, diariamente, lidam com o medo, a dor, a instabilidade emocional, o aprisionamento no seio familiar e sonhos de liberdade que, em grande parte dos casos, não passa mesmo disso: de um sonho. “Preciosa” fala da violência doméstica.
Nelson Nunes expõe a nu a sua vida e o homem que o atormentou durante toda a sua vida. O seu “pai”. Coloco aspas na palavra pai, dado que o autor assume que essa é para si uma palavra terrível, sinónimo do mais puro dos horrores, e não aquela a que um filho num seio familiar saudável reconhece: a de amor, protecção e segurança. O romance é baseado em factos reais: na sua vida e na da mãe. Tendo adoptado nomes diferentes ao longo do livro, Marco e Esmeralda, o autor coloca-se fora da sua pele e fala na terceira pessoa dos episódios que viveu em criança e jovem, ainda que pudesse não ter idade ou capacidade para compreender a dimensão e gravidade do que acontecia a ambos.
“Duas mulheres mortas em 24 horas. São já 29 as mortes por violência doméstica este ano. Em duas semanas, foram três as mulheres que morreram às mãos dos maridos ou ex-companheiros, num total de 23 desde Janeiro. Em 2018, foi noticiada a morte de 28 mulheres, mas os dados do RASI davam conta de 39 homicídios em contexto de violência doméstica”, noticia o jornal Público a 3 de Outubro de 2019.
Esmeralda, a mãe do protagonista/autor, poderia ter contribuído para as estatísticas na altura, no caso de não ter decidido que “não, não fico aqui”. E a forma como o faz é linear, dado que já tinha procurado ajuda junto das autoridades locais mas, algures nas décadas de 70 ou 80, este era um tema ligeiro que não merecia maior resposta do que “deixe lá estar. Volte para casa que vai ficar tudo bem”. Então, sozinha, pega o seu filho pela mão e leva-o para casa de amigos, naquele que acha ser o início de uma nova vida. Contudo, a violência não terminou aí, porque a perseguição ao filho e à mulher por parte do pai era incessante. Eram surpreendidos de dia e de noite. Recebiam ameaças de morte. Levavam tareias na rua. E, o mais terrível neste cenário, é que eram várias as pessoas que ajudavam esta família – mas, em casos de violência doméstica, a vítima está sozinha. Sem justiça não pode existir paz.
A história de Marco e Esmeralda é a história de tantas, tantas famílias. Se é possível falar-se da resistência de uma mulher como Esmeralda, que encontrou no seu filho força para se afastar da toxicidade do marido, é possível falar-se de mulheres que não encontram uma forma de fugir desta prisão. Se é possível falar-se da resistência de uma criança como Marco, que encontrou na sua mãe força para não se chegar a suicidar, é possível falar de crianças que não encontram outra alternativa. Falar da violência doméstica, na qual o pai é o agressor, é falar de mulheres que são humilhadas e diminuídas até que nada lhes reste; é falar de crianças que, como Marco, repudiam a palavra e o conceito de «Pai»; é falar de consequências inimagináveis ao nível da saúde mental e relacionamentos sociais e emocionais; é falar de um futuro incerto quando o passado e o presente são marcados pelo medo constante do pai: que este regresse a casa, que se irrite, que alguém o contrarie, que beba, entre tanto mais.
“Preciosa” é um livro com capítulos arejados. Não podia ser de outra forma, pois o sentimento de injustiça é tão forte que se torna necessário respirar fundo de vez em quando. Este livro precisa de ser lido não apenas para conhecermos a história de Marco e Esmeralda, mas sobretudo para conhecermos a realidade invisível de quem sobre diariamente abusos domésticos. E termos acesso a esta informação é uma forma de podemos agir ou opinar objectivamente sobre um problema público.
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