“O jovem Rei ficou deslumbrado com o globo. Em silêncio, passou as mãos sobre a representação dos continentes, procurou reconhecer os reinos. Com os dedos finos, procurou marcar a rota dos barcos. (…). Pegou no globo entre as mãos e rodou, rodou, rodou, tentando perceber como as terras se distribuíam pelos mares, sobretudo no hemisfério sul, onde tudo parecia ainda um enigma e onde ninguém explicava porque não caiam os barcos e as pessoas não andavam de pernas-para-o-ar, como diziam antigamente os sábios gregos. Era estranho o mundo. E aquele globo era tão distinto de uma carta plana, onde o mundo parecia ter os seus limites e os seus fins…Passado o espanto, olhou os seus conselheiros e inquiriu: “Alors, quele est le plan?”
Qual era o plano? Planos nunca minguavam a Fernão de Magalhães, a começar pelo momento em que, no ano de 1517, se sentiu vexado pelo Rei D. Manuel I, que lhe negava as graças e mercês que Fernão de Magalhães, que ao tempo tinha já completado metade da sua viagem de circum-navegação, lhe achava devidas.
Instigado pelas teorias do amigo Ruy Faleiro e acreditando poder descobrir, através do Ocidente, a passagem para os mares do Sul, parte então rumo a Castela para se apresentar ao recém-coroado, Carlos I de Espanha, V do sacro-império, a quem garantiu a existência de um anti meridiano de Tordesilhas que valia a posse das ricas Ilhas Maluco (hoje Molucas) para Castela.
Com uma escrita simples, uma descrição precisa sem ser exaustiva e usando linguagem da época, João Morgado, apoiado pelo historiador José Manuel Garcia, leva-nos em “Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso” (A Esfera dos Livros, 2019) aos bastidores desta viagem – numa altura em se comemoram os 500 anos da sua realização -, baseado nos registos e documentos históricos conhecidos sobre a mesma – inclusive de António Pigafetta, um dos poucos sobreviventes da mesma e que, ao longo dos quase dois anos, registara os mais ínfimos pormenores da mesma.
Uma viagem feita de uma grande fé e audácia, contra ventos e marés, por entre intrigas e traições, por mares nunca dantes navegados. E de planos que acabariam por conduzir à descoberta do Oceano Pacífico e da tão sonhada passagem para os mares do Sul, através do Ocidente, com Fernão Magalhães e a nau Trinidad à cabeça de uma armada que se propunha ir onde Cristóvão Colombo só se atrevera a sonhar.
No centro da narrativa está, como não podia deixar de ser, Fernão de Magalhães e o seu sonho de voltar a ver as Aves-do-Paraíso, espécie exótica originária das Maluco, que serve de mote para uma perigosa disputa pelo comércio do cravo-da-índia, especiaria que à época seria quase tão valiosa quanto o ouro entre Carlos V e D. Manuel I de Portugal.
Um livro bem escrito e de grande rigor histórico, que decerto agradará a quem se interessar pelo tema dos descobrimentos. No entanto, se procura uma leitura leve para descomprimir, este não será o seu livro, dada a crueza dos relatos das execuções e batalhas. Se, pelo contrário, é admirador da escrita de George R.R. Martin, achará leve esta verdadeira guerra das Especiarias.
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O livro “Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso” é a conclusão d`A Trilogia dos Navegantes, iniciada com “Vera Cruz”, sobre a viagem de Pedro Alvares Cabral – e que conta ainda com “Índias”, baseado na jornada de Vasco da Gama.
Nascido em 1965 na Covilhã, João Morgado, define-se como um escritor plural, dividindo-se entre crónicas jornalísticas, poesia, contos, histórias infantis e romances históricos e não só.
Lançou ainda “O Livro do Império”, sobre Luís de Camões e o lançamento dos Lusíadas. Nos romances intimistas contam-se ainda “Diário dos Infiéis” e “Diário dos Imperfeitos”.
Entre outros prémios, recebeu a Grã Cruz de Ordem de Mérito Cívico e Cultural, pela República Federativa do Brasil, o prémio literário Vergílio Ferreira em 2012, o Prémio Literário Alçada Baptista 2014, Prémio Nacional de Literatura LIONS em 2015, o Prémio Literário Fundação Dr. Luís Rainha – Correntes d’Escritas 2015 ou o Troféu Cristo Redentor.
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