“Queridos leitores, no verão de 2016 e, depois, em 2017, dei por mim em Atenas, a trabalhar como voluntária num centro para refugiados. Todos os dias chegavam mais pessoas à Grécia. Famílias perdidas e assustadas, principalmente da Síria e do Afeganistão. A experiência de estar com essas pessoas, nas circunstâncias mais horríveis da sua vida, abriu-me os olhos.”
As palavras são de Christy Lefteri, filha de refugiados cipriotas e professora universitária, em “O Apicultor de Alepo” (Asa, 2019), um livro comovente que narra a estóica vida de gente que, sobrevivendo à guerra, supera inimagináveis bloqueios formais e emocionais. A ideia da autora parece ser contar a história desta gente, com a qual contactou enquanto voluntária num centro de apoio da Unicef, em Atenas, como forma de os dignificar e de contribuir para o despertar de consciências de todos aqueles que, cómodos nas suas vidas, se sentem importunados com algum dano estético que aglomerados de gente mal cuidada possa causar.
Lefteri expõe aquilo que poderia ser apelidado de (des)humanidade, ou a ténue fronteira entre a bondade e a maldade humana, quando mostra em Alepo a ameaça e o extremismo do conflito e da sobrevivência e, nos campos de refugiados, a passividade compassiva e a cegueira oportuna e selectiva das autoridades perante evidências de exposição e exploração dos mais vulneráveis.
“No parque, em Atenas, era como se estivéssemos a viver na sombra mais escura de um eclipse solar.”
Através das memórias de Nuri, apicultor, e da sua mulher Afra, artista, Christy Lefteri permite o contacto do leitor com duas versões de Alepo: a cidade antes e depois da guerra instalada, e a forma como o povo procura sobreviver. Nuri e Afra retratam, ainda, a história de um amor que procura sobreviver a perdas profundas: de um filho, da terra, da identidade, da esperança e, em muitos aspectos, da dignidade.
“Alepo é agora como o cadáver de alguém que amamos, desprovido de vida, sem alma, cheio de sangue apodrecido.”
Complementarmente, através da relação com Mustafa, é dado relevo ao poder do afecto, uma intensa história de amizade entre dois homens e entre famílias ligadas pela história, pelo interesse pela apicultura, pelo testemunho partilhado de um sonho e da resistência, que a guerra afasta mas que a persistência faz sobreviver.
Através da vida das abelhas, dos apiários, da cegueira de Afra e da visão de Nuri, Lefteri coloca em destaque a vulnerabilidade, a vida e a esperança, percorrendo os túneis do sofrimento, as formas de conter a dor, de superar o trauma e de lidar com a realidade que cada um enfrenta à sua maneira. Afinal, “as pessoas não são como as abelhas, não trabalham em colaboração“.
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