Quando falamos de memórias, apontamos à capacidade de armazenar e recuperar momentos únicos, sentimentos, aventuras inesquecíveis, sofrimento, glória, palavras singulares ou, simplesmente, um olhar que guardamos no coração. Partilhá-los e registá-los para a eternidade é a justificação para a qual se escrevem memórias.
Furtado ao espólio de Salazar nos dias quentes da revolução de 25 de Abril de 1974, o manuscrito “As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia” (D. Quixote, 2019 – reedição), escrito nos últimos anos de vida e doado pela própria à Casa de Bragança, em Lisboa, através da mão do chefe do Estado Novo, foi recuperado por Miguel Real em 2010 – em Sófia, na Bulgária, na Comemoração do Centenário da República -, que ficou então incumbido de o depositar na Torre do Tombo – missão cumprida há uma década atrás.
Maria Amélia Luísa Helena, de origem francesa, casou com o príncipe real Carlos, Duque de Bragança, e foi a última rainha consorte de Portugal. Cresceu nos corredores e jardins de grandes palácios. Viajou muito, frequentando os melhores palcos do teatro e da ópera. Era uma ávida leitora, mulher sensível às belas-artes. Foi uma mulher extraordinária: inovadora, lúcida e determinada em fazer acontecer, implementar, fortalecer e modernizar o nosso país, quer na educação, na saúde ou na tentativa de enfraquecer as diferenças entre os mais e menos favorecidos.
Uma progressista que, muitas vezes, se via tomada pela tristeza e acossada pelas fatalidades: “Pisei pela primeira vez o solo português com o pé esquerdo, momento que contaminou negativamente toda a minha vida em Portugal, tenho a certeza, tão certa quanto a existência de um destino negro que me fez pagar culpas alheias”. O tempo tornou-a uma mulher amarga e magoada, procurando o refúgio na fé e na religião. Fátima recordava-lhe a serenidade da infância, reforçava a sua crença na bondade e na ética, era “como se entrasse num bosque sagrado dos druidas gauleses”.
Atenta, perspicaz, crítica e sensível, a Rainha D. Amélia fez com estas memórias um retrato de um país, de um povo, de uma forma de pensar e viver: “(…) a plebe, a chusma, a caterva, a arraia-miúda, o populacho, enfim, o povo, que enche os comícios, marcha nas manifestações e morre na rua pelos poderosos de cada momento, os que já têm querem mais, já têm dinheiro, fortuna, capital, prestígio, ambicionam agora o poder e a nobreza do cargo, são os republicanos, os oportunistas, os antigos lacaios do nobres, ressentidos, invejosos, os advogados com fazenda mas sem cargos políticos, os solicitadores encartados, os professores de Coimbra e os seu saber improfícuo(…)“.
A narrativa desenrola-se ao longo de doze capítulos, um por cada mês do ano, agrupados em estações, onde o inverno abriga a tristeza da velhice, da implementação da república, do afastamento do país e a dor de perder o marido e o filho. É no inverno, isolada “rezando silenciosamente junto dos seus túmulos”, que revê a sua vida, chorando pela felicidade que nunca viveu e sempre desejou. “As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia” não é um romance histórico, não se trata de uma biografia. São, antes, memórias dolorosas e comoventes.
Miguel Real é o pseudónimo do professor e, também, do escritor Luís Martins. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa e Mestre em Estudos Portugueses pela Universidade Aberta, tem publicado ensaio, filosofia, teatro e romance, sendo ainda autor de vários manuais escolares e traduções de obras filosóficas. Recebeu o Prémio de Revelação nas áreas da Ficção e do Ensaio Literário da Associação Portuguesa de Escritores. É colaborador permanente do Jornal de Letras, Artes e Ideias, onde faz crítica literária.
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