Lembram-se da Revista K, fundada e dirigida por Miguel Esteves Cardoso em Outubro de 1990 e que revolucionou o mundo cultural português pela sua insubordinação, arrojo e pouco decoro, oferecendo uma nova e entusiasmante vida à imprensa portuguesa? Pois bem, multipliquem esse impacto por 1000, recuem até 1915 e vão dar de caras com a mais importante e fulcral revista jamais fundada neste pequeno rectângulo à beira-mar plantado, ainda que tenham sido editados apenas dois números – o terceiro foi cancelado por dificuldades de financiamento. O seu nome? Orpheu.
Não se pense, porém, que a revista foi recebida de braços abertos, sobretudo no que diz respeito à crítica. Nos jornais abundavam os comentários depreciativos, sendo os então jovens escritores e colaboradores da revista chamados de doidos varridos, muito por culpa dos poemas “16”, de Mário de Sá-Carneiro e “Ode Triunfal”, de Álvaro de Campos. A relevância da revista para a cultura e sociedade portuguesa foi, porém, inegável, introduzindo no país o movimento modernista que se fazia sentir na Europa e dando a conhecer artistas tão fundamentais quanto Almada Negreiros ou Santa-Rita Pintor, além dos já citados Pessoa e Sá-Carneiro.
Um século depois, a Tinta da China puxa dos seus galões e publica “1915 – O Ano do Orpheu” (Tinta da China, 2015), um livro que é muito mais que um elogio póstumo à publicação. Na nota prévia escrita por Steffen Dix, o organizador desta edição, apresenta-se a definição de História segundo o historiador alemão Golo Mann, essencialmente constituída por duas componentes: os factos que aconteceram e as pessoas que os tentam compreender, sempre através dos seus próprios lugares e tempos. É partindo desta dupla via que o livro procura reconstituir Portugal em torno do ano de 1915, fazendo-o de diferentes ângulos de observação ao juntar investigadores de idades e percursos académicos diversos.
Para além de Portugal, há também um olhar internacional sobre o zeitgeist europeu nas primeiras décadas do século XX, descobrindo-se os pontos de encontro parisienses e londrinos onde se reuniam todo o tipo de intelectuais: vorticistas, cubistas, futuristas e órficos. Dessa forma e recorrendo à figuração moderna do mítico cantor grego, foi decidido recorrer ao artigo masculino, falando-se assim do Orpheu como movimento global.
O livro está dividido em três partes: Contexto – onde se identificam algumas características do período anterior e decorrente da Primeira Grande Guerra e se reconhece o contexto sócio-cultural que revelou o modernismo; Confluência – onde se mostram os fios que ligam o Orpheu ao mundo das artes fora de Portugal; Protagonistas – onde se fala dos artífices que levaram a bom porto esta publicação.
Para além de Jerónimo Pizarro, um habitué Pessoano, este lançamento conta ainda com a colaboração de outros 23 investigadores, que incluem nomes como Arnaldo Saraiva, Nuno Júdice, Filomena Serra e Manuel Villaverde Cabral.
O livro inclui também fichas biográficas completas de todos os colaboradores da revista, como Mário de Sá-Carneiro ou Ângelo de Lima, um capítulo dedicado a Amadeu de Sousa-Cardoso (que iria participar no número três) e uma cronologia.
A acompanhar esta viagem histórica, “1915 – O Ano do Orpheu” chega acompanhado de muitas ilustrações, caricaturas, reproduções de quadros, recortes de jornal, carimbos, posters, correspondência e fotografias, tudo embrulhado numa fabulosa capa – mais uma com o selo da editora – que recria o segundo número da Orpheu. Se aí por casa têm uma estante especial dedicada a livros memoráveis, tratem de arranjar um bom lugar para este.
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