Fundada no ano de 1973, em Setúbal, a livraria Culsete tornou-se o recreio preferido de muitos bibliófilos, numa altura em que o acto de entrar num espaço livresco era tão solene quanto transpor as portas de uma igreja para uns minutos de reza. Para além dos livros nas prateleiras, era ponto assente que de lá não se sairia sem uma conversa de circunstância com o histórico livreiro Manuel Medeiros, que tanto poderia ir da poesia erótica e satírica ao tumulto literário inventado pelos Russos.
Foram quarenta e três os anos que Manuel e Fátima Medeiros dedicaram à Culsete, não apenas à venda de livros como, também, à mediação da leitura, formando muitos leitores num percurso exemplar. Quando Fátima Medeiros decidiu fechar as portas da Culsete, estávamos então em 2016, muitos sentiram um sentimento de orfandade, que acabou por ser aplacado alguns meses depois quando um grupo de jovens setubalenses decidiu manter as portas abertas. Uma decisão que ainda durou três anos, mas que acabou por revelar uma evidência de todo o tamanho: seria necessária uma transformação profunda para que a Culsete voltasse a ser um ponto de referência para quem gosta de livros. Uma evidência que acabaria por se tornar realidade no dia 23 de Abril deste ano – precisamente o Dia Mundial do Livro – deste ano quando, após uma cirurgia plástica sem falhas, a Culsete reabriu sob o comando do casal Rita Siborro (44 anos, formada em Psicologia) e Raul Reis (45 anos, ligado ao Design e à Comunicação).
O espaço de 120 metros quadrados continua a ser o mesmo, mas a transformação operada foi quase total, apesar de a alma da antiga Culsete permanecer através do reaproveitamento de alguns materiais da loja original como bancos, estantes e mesas de madeira.
O espírito que anima Rita e Raul vai muito para além da venda de livros, pretendendo fazer da livraria um lugar que acolha oficinas, workshops de escrita e fotografia, eventos com escritores e actividades para a pequenada. Nestes poucos meses, a Culsete já esteve à conversa com gente como Catarina Furtado, José Riço Direitinho e Jaime Bulhosa, e ouviu contar histórias infantis em modo kamibashi pela boca de Elisabete Rosa-Machado, da The Poets & Dragons Society. Jogando em casa, o Deus Me Livro entrevistou a dupla que voltou a fazer da Culsete uma livraria cool.
Os livros são um bem essencial na vossa vida presente, com a abertura da livraria. Recuando um pouco na linha temporal, qual o significado e a história dos livros na vossa vida? Que livros vos formaram enquanto leitores?
Os livros sempre tiveram um importante papel na nossa vida. Aliás, se esse não fosse um facto talvez nunca nos tivéssemos motivado em abrir uma livraria. Desde criança que os livros sempre nos rodearam. No meu caso (Rita), tinha pilhas de livros de banda desenhada a concorrerem em altura com os móveis do meu quarto. Os típicos livros infantis e juvenis das décadas de 70 e 80 fizeram também parte da minha biblioteca: a Anita, Os cinco, os contos de Hans Christian Andersen, a colecção Uma Aventura, o Tom Sawyer. Nunca tive de ser obrigada a ler, fi-lo sempre de forma espontânea e entusiasta, mas atribuo a alguns professores um forte contributo para a consolidação dos meus hábitos de leitura. Felizmente, sempre tive muitos livros em casa e acho que consegui ler a grande maioria deles. Este meu hábito teve contudo um ainda maior impulso na universidade onde a frequência da biblioteca me fez ler colecções quase inteiras como a de Ficção Universal da Dom Quixote. Na altura apaixonei-me pela escrita do Milan Kundera e li bastante deste autor, pelo que quase sempre o menciono quando se fala de livros importantes na nossa vida. Actualmente não sou fiel a nenhum autor nem estilo literário, mas gosto especialmente de enredos complexos, personagens densas e livros que conduzam a reflexões profundas. Gosto muito da literatura portuguesa e, para além dos nossos grandes nomes como a Agustina Bessa-Luis ou o José Saramago, sigo de perto a obra de alguns escritores contemporâneos como o Gonçalo M. Tavares, o José Luís Peixoto e o Valter Hugo Mãe.
No que me diz respeito (Raul) acho que posso dividir a minha paixão pelos livros em cinco momentos distintos, sendo que três deles correspondem à minha infância/adolescência: em primeiro lugar a ávida leitura de todos os livros das Aventuras do Tintin que apanhei na altura (acho que até seria um pouco novo demais para entender algumas das temáticas); em segundo lugar os livros que eram comprados através do Círculo de Leitores, e que entravam lá em casa por imposição do meu pai – ele não era grande leitor mas fazia questão de os comprar, consciente da sua importância e de me dar a possibilidade de escolher sempre um da minha preferência. Diga-se em abono da verdade que optava quase sempre por enciclopédias ou livros de geografia, mas foi nessa altura que tomei contacto pela primeira vez com clássicos portugueses como o Eça de Queiroz e também com o Victor Hugo e seus Miseráveis. Só lhes pus os olhos em cima anos mais tarde, mas aquela presença física de livros grandes e bem encadernados na estante da sala foi sem dúvida marcante. Por último, no capítulo infância/adolescência e terceiro na ordem de influência, a biblioteca do meu padrinho – era imponente, tinha uma madeira escura e tocava o tecto, todas as paredes preenchidas, umas prateleiras com os livros perfeitamente arrumados, alinhados e impecáveis, outras completamente caóticas, como se existissem duas pessoas diferentes a viver naquele espaço. A estas paredes preenchidas juntava-se a secretária e o sofá, sempre com mais umas pilhas de livros “em andamento” (como ele dizia). Com tanto livro disponível eu só “roubava” policiais…. Só anos mais tarde após a minha adolescência (a música nessa altura ganhou a batalha) e já a entrar na idade adulta é que voltei a ler com mais regularidade, e o livro que mais me marcou foi o Evangelho segundo Jesus Cristo, que representou o regresso aos livros e a descoberta a sério de romances. Na universidade apaixonei-me por Boris Vian e o seu Arranca Corações e, actualmente, encontro no Gonçalo M. Tavares o meu autor de eleição. Mas devo referir que a minha paixão pelos livros não está apenas ligada aos seus “conteúdos” e à imaginação dos autores, mas também fortemente ligada à parte mais técnica dos livros: a sua produção, paginação, design, materiais e acabamentos. Estes são para mim uma componente igualmente apaixonante e relevante. Esta paixão começou igualmente na minha infância, sendo fortemente reforçada pela minha formação académica e profissional.
Julgo serem ambos de Setúbal, o que significa que terão visitado este espaço também como leitores. O que os levou a pegar numa livraria, sobretudo em tempos onde estas parecem estar ameaçadas da extinção – e depois de os anteriores donos só a terem conseguido manter a funcionar durante três anos?
Sim, somos ambos de Setúbal e ambos conhecíamos a Culsete desde crianças o que foi, obviamente, importante na hora de decidir arriscar numa área de negócio com fortes ameaças como é o caso das livrarias. Mas acima de tudo, e ponderando os riscos que sabemos existir, acreditamos que começam a surgir novas oportunidades para as livrarias independentes, porque só estas apresentam características que começam novamente a ser valorizadas pelos clientes. Acreditamos que uma cidade como Setúbal merece ter uma livraria de referência, atenta às novas tendências, mas a saber respeitar aquilo que é transversal num bom serviço ao cliente. Acreditamos ainda que uma marca como a Culsete merece ser continuada no seu legado e na sua missão. E acreditamos que conseguimos fazer com que tal aconteça. Pelo menos queremos muito tentar fazê-lo, ainda que os projectos anteriores tenham tido desfechos que poderiam levar à conclusão que não valeria a pena dar à Culsete uma nova oportunidade. Resolvemos aceitar o risco e, dando o nosso melhor, tentar com que a Culsete volte a ser uma livraria importante no espaço regional e nacional. Contudo, o sucesso deste negócio depende em muito da reciprocidade que se estabelece entre livreiros e leitores. Ou seja, há uma linha muito frágil a sustentar este negócio: a concorrência é feroz, as margens são reduzidas, o produto não é de primeira necessidade e a diminuição dos hábitos de leitura conduz a um afastamento das pessoas dos livros. Se não houver público, facilmente uma livraria morre de forma rápida. Por isso, e porque sabemos que há muitos leitores a querer que a Culsete exista e se mantenha, é que apelamos a que nos ajudem a mantê-la viva e saudável.
Quem entrar pela primeira vez na nova Culsete – e conhecendo a antiga livraria -, ficará muito surpreendido com o que fizeram ao espaço. A ideia foi a de “deitar abaixo para construir de novo”?
A ideia foi a de criar uma cisão para poder dar uma continuação. Voltar a fazer igual seria um erro face aos desfechos anteriores, obviamente. A mudança era necessária. Ainda assim fomos muito cuidadosos com essa mudança. Mantivemos muito do que era a Culsete mas demos-lhe uma nova roupagem, traduzida por mais espaço, mais luz, um conceito mais abrangente e muita atenção aos detalhes. Mas mantivemos aquilo que achámos que já era de valor na Culsete: uma escolha cuidada dos títulos, uma proximidade com o cliente e até mesmo os próprios móveis. Referimo-nos a ela como “a sua nova livraria de sempre”, porque é neste aparente paradoxo que a gostamos de colocar, uma outra forma de apelidar a renovação que lhe demos.
Parecem haver diversos espaços dentro de um espaço único. Como está organizada a livraria para quem a visita e o que se poderá encontrar para além dos livros?
Para além dos livros poderá encontrar-se um local de pausa para leitura, que será o mesmo que acolherá os eventos, quer sejam estes conversas com autores, apresentações de livros, horas do conto ou workshops. Temos ainda uma área definida para exposições, o espaço de galeria onde serão exibidas mostras de ilustração, fotografia, pintura, ou outras instalações artísticas. Por último temos um espaço de venda de estacionários, não só os herdados da Culsete, que apelidamos de vintage, como outros de concepção própria da marca Culsete ou de outros artesãos portugueses. Privilegiamos a qualidade, o design e o produto nacional, ainda que possamos também ter marcas estrangeiras.
Julgo que do espaço antigo aproveitaram bancos, estantes de madeira e uma mesa. Foi importante manter algum do esqueleto antigo como uma espécie de perpetuação da memória colectiva?
Sim, foi, por vários motivos. Primeiro, porque do ponto de vista conceptual assim é que faria sentido, mas também porque os próprios móveis tinham uma estética que muito nos agradou e que é intemporal (como é o caso das vitrines e dos dois balcões da entrada). A mesa comunitária, que acaba por ser um dos elementos mais diferenciadores da livraria, foi na realidade o reaproveitamento de mesas que anteriormente serviam de bancadas de exposição de livros. A memória da Culsete, e as histórias que esta encerra, estão conservadas em muitos recantos. Esta foi uma preocupação que claramente assumimos. Contudo, chegou a hora de darmos à Culsete novos capítulos e com eles novas histórias e personagens.
Apesar de ter sido em tempos uma livraria de culto, há já algum tempo que a Culsete tinha perdido a mística. O que está planeado para a recuperar e a distinguir das mega-livrarias? Que propostas estão pensadas para os próximos tempos (e o que é que até ao momento já decorreu)? Vai um pouco ao encontro do slogan triangular que encontramos ao novo logotipo: livraria – galeria – oficina de saberes?
Queremos que a Culsete mantenha o seu lugar de destaque no mundo livreiro mantendo a sua independência, a confiança junto dos leitores, editores e escritores, e o reconhecimento pela qualidade do seu serviço e da sua oferta. Isto significa que não podemos oferecer o mesmo que as mega-livrarias. Nunca vamos conseguir competir em número de livros e em descontos (porque não temos espaço, nem capacidade de negociação junto dos editores). Mas podemos assegurar que a proximidade com o cliente será garantida, que quem nos visita encontrará uma casa de livros, feita por quem gosta de livros e para quem gosta deles, que a selecção dos livros será feita de forma criteriosa e que a dinamização do espaço ocorrerá de forma assídua. Queremos que as pessoas nos visitem pelos livros mas também pela atmosfera, e pelos eventos que planeamos fazer. No pouco tempo em que estamos abertos já conseguimos fazer hora do conto para crianças, apresentação de livros, inauguração de exposições e feiras no exterior. Pretendemos manter uma agenda de eventos diversificada e consistente que andará não só à volta dos livros mas também de música e outras performances artísticas. Em breve teremos novos autores connosco, a falar dos seus livros, das suas carreiras ou de temas do quotidiano. Iremos ainda iniciar a nossa oferta de workshops. Cimentar a nossa relação com outros parceiros institucionais e privados da cidade, activos na divulgação do livro e da cultura, estão também entre os nossos objectivos. Tudo isto estará ainda mais consolidado a partir de Setembro/Outubro.
O logótipo acabou também por ser um reflexo desta necessidade de reinvenção?
O logótipo seguiu a mesma lógica de cisão mas de respeito pelo logótipo anterior. Reinventou-se, para actualizar, sem cortar totalmente com o passado. O lettering, por exemplo, tem características formais de desenho ligadas ao anterior (casos do L e dos E), e uma estética muito característica e próxima dos anos 70 para se sentir que há no novo logotipo algo com história. A estas características acrescentou-se duas coisas: cor e movimento. No que diz respeito a cores, o laranja está ligado a materiais de estacionário antigo da Culsete, o amarelo mostarda enquanto reflexo das madeiras encontradas e recuperadas e, por último, o cinzento, muito presente no espaço e no “novo” mobiliário e que funciona como cor neutra mas unificadora desta nova identidade. Em relação ao movimento dado pelo corte e repetição da primeira e última letra o mesmo simboliza o folhear de um livro.
Em termos de livros, o que poderão encontrar as pessoas aqui? Essencialmente novidades (até por uma questão de espaço) ou vai ser construído uma espécie de catálogo/ livros essenciais?
Temos uma equilibrada selecção de livros de fundo mas vamos também apostando em novidades de qualidade. Temos uma forte aposta na literatura, poesia e infanto-juvenil. Queremos conseguir responder à procura dos nossos clientes e também procuramos ter uma oferta diferenciada, com livros de editoras mais pequenas, menos conhecidas e mais alternativas.
Falem-me um pouco da No Frame Creative Publishing, um projecto do Raul cujos livros estão também disponíveis na livraria.
A editora No Frame é um projecto muito recente mas anterior à nossa “entrada” na Culsete, e dá corpo a um desejo pessoal antigo de ter uma editora focada na área da criatividade na vertente mais visual. A fotografia e a ilustração têm um papel muito relevante nas colecções iniciais, mas estão já previstos lançamentos nas áreas do design, arquitectura e publicidade. A No Frame quer na sua essência ser uma editora descomplexada e não elitista, mas ao mesmo tempo muito cuidadosa no critério e qualidade das publicações. Surge também porque eu (Raul) e o Tiago Gonçalves (meu sócio na editora) detectámos que existe muito talento disperso e desconhecido a quem falta curadoria e oportunidade para editar com qualidade e de forma profissional. A nossa distribuição, para além de estar focada no online, estará igualmente presente em lojas físicas em Portugal e no estrangeiro, mas terá igualmente critério de escolha rigoroso e estará à venda essencialmente em livrarias independentes e espaços não convencionais, mas onde a sua integração seja “natural”.
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