Depois de, há não muito tempo, ter apelado a que os leitores dessem um pulinho a uma grande superfície para de lá saírem com um poeta debaixo do braço, Afonso Cruz coloca agora o avental, ajeita o barrete de chef e ensina-nos “Como Cozinhar Uma Criança” (Alfaguara, 2019), uma imensa e (até agora) pouco aproveitada fonte de proteínas.
Arrancamos em modo masterchef para adultos que, a certa altura, parecem querer incitar ao canibalismo, trocando os sempre rijos adultos pela carne mais tenra das crianças, “recheadinhas de possibilidades, muito melhores do que as pessoas demasiado cozinhadas“.
Transportando os seus dotes de escritor para a culinária, Afonso Cruz coloca, desde logo, uma questão importante: nisto da cozinha como na vida, devemos seguir a receita à risca ou mandar o protocolo às urtigas? Para uma tentativa de resposta abanam-se as ideias, usa-se e abusa-se de metáforas, promovem-se abraços, beijos e conversas corpo a corpo contra a descriminação e introduz-se o factor surpresa. Para este grupo de chefs, a questão é bem clara: não será melhor cozinhá-las já antes que se transformem em adultos intragáveis ao palato?
Nota de destaque para o trabalho gráfico, também ele a cargo de Afonso Cruz, que mistura fotografia, objectos reais e desenho, tudo para fundir o real com o imaginário e transformar o mundo numa cozinha Michelin em hora de ponta. A lição a tirar, se é que isso aqui existe, é a de que, por muitos maus ingredientes que por ai andem, haverá sempre alguém a fazer a diferença, e que ajudará a transformar o planeta num lugar melhor. E, de preferência, com melhor olfacto.
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