É, comece-se talvez por aí, um parente não muito afastado de achados literários como “1984”, “Nós” ou “Admirável Mundo Novo”. Escrito no ano de 1936 pelo checo Karel Čapek, “A Guerra das Salamandras” (Antígona, 2018) rapidamente se transformou num livro de culto, uma visão distópica do mundo e da humanidade que, aqui, veste a pele das salamandras, tudo – ou apenas – para repetir a sua louca marcha para a extinção – ou, se tudo correr bem, para mais um recomeço.
Ao largo da ilha de Tana Masa, o muito espirituoso capitão Jan van Toch descobre, em Devil Bay – o único local por explorar devido à lenda de estar habitado por diabos marinhos -, salamandras inteligentes, aparentemente muito afáveis e cordiais, exímias na arte de apanhar ostras e em oferecer, em troca de pouca coisa, as pérolas que em muitas delas se escondem.
Numa questão de décadas, as salamandras tornam-se operárias e ficam no centro do comércio mundial, para além de servirem de cobaias em experiências científicas ou de atracções em jardins zoológicos, isto até surgir um movimento público que defende o seu linchamento – tudo em nome dos recursos naturais e da sobrevivência humana. De conquista em conquista, as salamandras estão prontas para dominar o mundo e fazer do homem uma criatura extinta.
É impressionante como, oitenta e poucos anos depois de ter sido escrito, “A Guerra das Salamandras” continua a ser tão pertinente, seja ao comparar com muita ironia a inteligência da salamandra ao homem médio – “A sua vida intelectual – se de tal se pode falar – consiste precisamente de ideias e opiniões correntes na época presente” -, ou ao desenhar a régua e esquadro aquilo que, nos tempos modernos, foi baptizado de sistema neoliberal – “Afinal, não havia necessidade de fornecer às salamandras facas e outras ferramentas de uma qualidade tão excelente como o fazia o defunto Van Toch. Não havia necessidade de as alimentar de uma forma tão dispendiosa. Deveria ser possível baixar consideravelmente a despesa associada à manutenção das salamandras e assim aumentar a rentabilidade das nossas empresas. (Vivos aplausos.)“.
A opção pela escravatura, a utopia pela exploração, o enterro da memória, num livro onde, apesar da pele fria e húmida, é o próprio homem que veste esta pele estranha, e que, como num sketch à moda dos Monty Python, caminha convictamente para o abismo, entre a ganância, a soberba e a mais pura tolice. Um mundo feito à nossa imagem. Destaque também para a paginação e o design irrepreensível desta edição com o selo da Antígona.
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